Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O caso Amarildo e a navalha de Ockham

Para uma pessoa conseguir situar-se no mundo moderno (cada vez mais complexo), é imprescindível acesso irrestrito a informação de qualidade: vivemos na era da informação. Se a proliferação de diferentes tipos de mídia tem favorecido o acesso irrestrito, igual situação não tem acontecido quanto à qualidade da informação. O leitor de jornal (impresso ou digital) encontra-se hoje diante de uma tarefa difícil de processar uma massa de informação, ao mesmo tempo, gigantesca e amorfa: como construir um quadro coerente e válido para uma enxurrada de informações conflitantes?

Em ciência, costuma-se invocar a chamada “navalha de Ockham” [formulada seja como numquam ponenda est pluralitas sine necessitate (“a pluralidade não deve ser posta sem necessidade”), seja como entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem (“as entidades não devem ser multiplicadas além da necessidade” – Wiki)] como princípio para escolha entre hipóteses alternativas, ficando-se, segundo sua aplicação, com a mais simples. A que resultado a aplicação desse princípio levaria no caso Amarildo? Na mídia, de forma geral, circularam basicamente duas hipóteses:

Hipótese 1: Amarildo, desaparecido desde 14 de julho, teria sido morto por traficante como retaliação por atuar como informante junto à polícia (versão vigente na mídia desde, pelo menos, 3 de agosto [“Polícia suspeita que corpo removido da Rocinha seja de Amarildo“ (Estado de S.Paulo, 3/8/2013)]).

Hipótese 2: Amarildo teria sido morto durante tortura com asfixia e choque elétrico, realizada em contêiner da UPP por policiais militares que lá trabalhavam; teria sido retirado de lá envolto em capa de motocicleta pela parte superior, razão pela qual as câmeras da região não o teria registrado, e teria tido seu corpo ocultado; em seguida, um policial da UPP infiltrado teria encenado conversa em telefone sabidamente grampeado pela própria polícia para incriminar um traficante da região quanto à morte em questão; além disso, o comandante da UPP teria subornado um jovem para que depusesse, ainda no mês de julho, defendendo a versão da morte por traficante. (Uma versão inicial, ainda limitada, se tornou vigente desde, pelo menos, 17 de setembro [“PMs devem ser indiciados por morte do pedreiro Amarildo no Rio“ (Folha de S.Paulo, 17/9/2013). A principal mudança na formulação das versões parece ter ocorrido com a modificação, em 11 de setembro, no depoimento das testemunhas que haviam defendido a versão de morte de Amarildo por traficante: “Menor diz que foi pago para acusar traficante de assassinar Amarildo“ (Estado de S.Paulo, 14/9/2013)].)

Versões de textos

Pela própria extensão textual das hipóteses fica evidente que a aplicação do princípio levaria a se acolher a hipótese 1: justamente aquela para a qual hoje abundam provas contrárias. Este é o ponto que se pretende discutir aqui: no dia-a-dia, os leitores são expostos a milhares de notícias e frequentemente se dão por suficientemente informados mesmo quando deparam com notícias simples, em função da tendência de se achar que o mais simples é mais verossímil. Veja-se que, em função das proporções que o caso Amarildo tomou, foi possível desmascarar a falácia da validade da hipótese mais simples. Mas quantos são os casos em que a falácia da simplicidade não foi desmontada?

É importante salientar que se discute aqui a questão desde a perspectiva do leitor comum: aquele que não possui condições técnicas para avaliar provas materiais nem tem acesso direto à apuração dos fatos, mas cuja opinião é essencial para desencadear grandes mobilizações que, como já se viu, têm papel essencial na demolição de hipóteses simples e falaciosas.

Isto posto, chega-se à questão essencial: o que, na estruturação de uma notícia sugere que o leitor deve atribuir um voto de “desconfiança” em relação à validade da informação. Pela experiência em relação ao caso Amarildo, a resposta é: sua simplicidade. Embora possa parecer óbvio, não o é. Diariamente um leitor topa com notícias sobre violência urbana em que a vítima não é nomeada (nem mesmo na forma de iniciais, como recurso com o objetivo de preservá-la); nenhuma elaboração sobre as motivações, baseada em apurações metódicas, é apresentada; nos dias seguintes, o tema nem sequer é retomado. Não só se deve desconfiar das versões de textos simples como daqueles com a estruturação-padrão em torno de expressões como “não há suspeitos”, “não há testemunhas”, “a vítima teria ligação com o tráfico de drogas” (como se essa fosse a única causa da violência urbana…) etc.

Em síntese, parece evidente que, no que diz respeito à informação sobre violência no Brasil, a navalha de Ockham é justamente o princípio que o leitor comum nunca deve invocar…

******

César Nardelli Cambraia é professor associado na Faculdade de Letras da UFMG