Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os últimos vestígios da França colonial

Em 2013, morreram o general vietnamita Vo Nguyên Giap, aos 102 anos, o jornalista francês Henri Alleg, aos 92 e o general francês Paul Aussaresses, aos 95. Entre outros fatos relevantes, o ano que passou foi marcado pelo desaparecimento desses três personagens primordiais na história da descolonização francesa. O “país dos direitos humanos” viu seu império colonial desmoronar no século 20, com as guerras de independência da Indochina e da Argélia, das quais esses três homens foram protagonistas.

O jornalista e militante comunista Henri Alleg e o general Paul Aussaresses viveram pouco mais de nove décadas e estiveram em campos opostos na guerra de independência da Argélia. O centenário general Vo Nguyên Giap foi o grande herói do povo vietnamita, responsável pela vitória contra os franceses e, posteriormente, contra os americanos, ambos muito mais numerosos e mais fortes.

Henri Alleg, morto dia 17 de julho, sobreviveu à tortura que os militares franceses utilizaram como arma de guerra na Argélia (1955-1962), onde ele dirigia o jornal comunista Alger Républicain. O general Aussaresses, morto dia 4 de dezembro, ficou tristemente célebre por ter confessado, em livro publicado em 2001, Services Spéciaux,1955-1957, o uso da tortura durante a guerra de libertação nacional que levou à independência da Argélia. Alleg, autor do primeiro livro que denunciou a tortura naquela guerra, La question, publicado em 1958, foi uma das vítimas do horror implantado pelo exército colonial francês para combater os militantes da independência argelina, reunidos na Frente de Libertação Nacional (FLN).

História oficial

Morto em 4 de outubro, o general Vo Nguyên Giap foi um dos maiores estrategistas e líderes militares do século 20. Em maio de 1954, à frente dos guerrilheiros vietnamitas, o famoso Exército Popular Vietminh, criado no fim da Segunda Guerra Mundial, Giap expulsou os militares franceses definitivamete do território que a França chamava “Indochina francesa”. Foi na famosa batalha de Dien Bien Phu, de triste memória para os franceses, que a guerra acabou para a França.

A um jornalista francês, Giap contou: “Na batalha de Dien Bien Phu, para transportar um quilo de arroz aos soldados que faziam o cerco, era preciso consumir quatro no trajeto. Para fazer chegar ao local as armas, munições e os alimentos, utilizamos 260 mil pessoas, mais de 20 mil bicicletas, 11.800 balsas, 400 caminhões e 500 cavalos”. As armas eram desmontadas para serem remontadas no destino. A densa floresta tropical, perfeitamente conhecida pelos guerrilheiros, servia de proteção para os nativos e de armadilha para os franceses. Como o frio da Rússia foi uma armadilha para as tropas de Napoleão, cujas batalhas foram minuciosamente estudadas por Giap.

Mas se Dien Bien Phu foi o fim da guerra contra os franceses não foi o início de uma era de paz para o Vietnã. No ano seguinte começou a outra guerra, desta vez contra os americanos. Em abril de 1975, Giap liderou seu povo na vitória contra o invasor norte-americano, pondo fim à guerra do Vietnã. Os acordos de Paris, assinados entre Henry Kissinger e Le Duc Tho, selaram a paz. Com a reunificação do país, em 1976, o povo vietnamita recuperava seu território, depois de ter expulsado o invasor chinês, o colonizador francês e os norte-americanos. A última guerra deixou sequelas duradouras nos dois povos.

Em 1940, durante a época colonial da Indochina francesa, a mulher de Giap, militante comunista como o marido, fora barbaramente torturada pelos militares franceses. Seu marido havia viajado à China para encontrar-se com o líder vietnamita Ho Chi Minh, refugiado naquele país. A história oficial do colonizador atribuiu a morte da mulher de Giap a um suicídio, tática empregada posteriormente na Argélia pelos mesmos militares franceses para justificar mortes sob tortura.

Mesma manchete

Além de assumir no seu primeiro livro a convicção de que a tortura pode ser utilizada como arma de combate e dar detalhes de seu uso indiscriminado na Guerra da Argélia, o general Paul Aussaresses confirmou mais tarde, sem eufemismos, à jornalista Marie-Monique Robin, autora de Escadrons de la mort l’école française, publicado em 2004, o uso da tortura em larga escala pelos militares brasileiros. Disse, inclusive, que “o general João Figueiredo era o chefe dos esquadrões da morte brasileiros”.

Em 2008, no seu novo livro, Je n’ai pas tout dit, o general Aussaresses contou em um capítulo sua atividade no Brasil, de 1973 a 1975. Nessa época, conviveu com os generais brasileiros do regime militar com o manto protetor de adido militar francês em Brasília, posto que encobria uma estreita cooperação de treinamento dos militares latino-americanos no Centro de Instrução de Guerra na Selva, em Manaus (AM).

Henri Alleg viveu como um herói discreto. Ao morrer, o jornal Le Monde lhe deu uma página inteira relembrando uma vida heroica de militante, desde a Segunda Guerra Mundial, quando combateu o nazi-fascismo. O jornal Libération homenageou o militante comunista, autor do livro que trouxe a público a denúncia sobre a tortura na guerra da Argélia. E o jornal comunista L’Humanité fez uma primeira página com sua foto ocupando todo o tabloide, para louvar o jornalista e colaborador frequente.

Giap mereceu o mesmo tratamento de toda a imprensa francesa, que saudou o herói do povo vietnamita e o grande estrategista militar.

Quanto ao general Paul Aussaresses, ele mereceu tanto do Le Monde quanto do Libération a mesma manchete no dia seguinte à sua morte: “Mort du général Aussaresses, tortionnaire en Algérie.”

Tive a oportunidade de entrevistar Alleg e Aussaresses para um livro que estou escrevendo sobre o papel dos militares franceses nas ditaduras latino-americanas (ver CartaCapital n° 780, pág. 46).

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Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris