Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Memória de jornalista quando ainda estudante

Lúcio Flávio Pinto é natural de Santarém (PA), sociólogo formado pela Faculdade de Sociologia e Política de São Paulo e jornalista profissional desde 1966. Trabalhou em várias publicações na grande imprensa brasileira no decorrer de sua carreira e desde 1987 edita o Jornal Pessoal, um quinzenário alternativo que versa primordialmente sobre a Amazônia.

Na década de 1960 estudou no Colégio Estadual Paes de Carvalho, em Belém do Pará, um estabelecimento público de ensino considerado referência à época. Ingressou, ainda, no movimento estudantil do período, estando à frente de alguns grêmios estudantis e centros acadêmicos dos estabelecimentos onde estudou. Nesse contexto, participou de relevantes manifestações que marcaram a história desse movimento.

Tendo em vista que você estudou no Colégio Estadual Paes de Carvalho na década de 1960, como você caracteriza a educação pública paraense nesse período?

Lúcio Flávio Pinto – O Paes de Carvalho era um colégio de excelência, era uma escola modelo, e o acesso se dava através de concurso. Havia uma seleção por meio de prova para ingressar nesse estabelecimento. É claro que sempre funcionou um esquema de “pistolão”, sempre houve as indicações, mas a esmagadora maioria dos alunos estava no Paes de Carvalho por mérito, por ter passado no teste de seleção, e isso permitia que a elite que procurava o Paes de Carvalho pela qualidade do ensino se juntasse a pessoas de níveis sociais inferiores. Havia, então, uma convivência democrática. Na minha época estudavam ou davam aulas no Paes de Carvalho alguns dos futuros governadores do Estado, futuros advogados, e ao mesmo tempo pessoas do povo mesmo.

E havia um padrão de qualidade muito bom no Paes de Carvalho. Os professores, por exemplo, tinham acesso através de concurso, defendiam teses e dissertações, que eram feitas com todo o rigor acadêmico. O Paes de Carvalho era, de fato, a melhor escola de ensino do Ginásio (hoje denominado Ensino Médio). Era a melhor de longe e todos a disputavam. Hoje, não existe mais isso na escola pública.

E o ensino, como se percebe da própria divisão em Clássico e Científico, já preparava antes do vestibular as pessoas – os alunos – para seguirem as suas aptidões naturais. Quem fazia o Clássico era porque gostava de ciências humanas, literatura, etc., e quem fazia o Científico era porque gostava de química, física, matemática… Já havia, então, essa seleção prévia e uma qualificação. Por isso, se formava muito melhor do que se forma hoje.

Eu devo muito não só ao Paes de Carvalho onde eu estudei, mas também ao colégio estadual André Maurois, no Rio de Janeiro, onde eu entrei no 1º ano. Esse colégio deveria suceder o Colégio Pedro II, que era considerado de excelência em nível nacional. E o colégio André Maurois foi um ensino alternativo que, por uma infelicidade, surgiu pouco antes do golpe militar e em função da linha repressora do golpe, foi esvaziado. Mas, apesar disso, a função dele era ser uma escola experimental de grande qualidade financiada pelo Poder Público.

Como se dava o aprendizado em sala de aula nesse período?

L.F.P. – Eu tive uma vida escolar um pouco fora do padrão, porque eu estudei em escolas públicas e em escolas privadas. Nessa época, as escolas religiosas tinham uma participação muito forte. Havia também escolas de professores isolados; por exemplo, eu participei de uma escola de duas irmãs negras que havia na travessa Padre Eutíquio, em Belém.

Mas uma coisa que eu tive de bom foi que desde o início eu sempre procurava ir além do que era ensinado. Então, eu lia os manuais que eram indicados, mas nunca me restringia àqueles manuais; eu sempre procurava uma literatura além daquilo que me era dado. E havia certa receptividade na escola àqueles alunos que se empenhavam para saber mais.

A gente percebia que os professores tinham três características marcantes: 1ª) conhecer a matéria sobre a qual estavam falando; 2ª) dedicação e atenção aos alunos; e a 3ª) uma mística do ofício, que de certa forma era usada para pagar maus salários, mas mesmo com os maus salários essa mística levava o professor que vivia mal a ter um desempenho muito melhor do que se tem hoje. Portanto, havia um compromisso do professor com aqueles alunos que mais se destacavam. E assim eu fiz muitas amizades com professores pelo fato de eu questionar muito. Alguns professores reprimiam esse questionamento, mas outros professores achavam isso ótimo e passavam a estabelecer uma relação de amizade com o aluno.

Como você declarou, a educação pública paraense entre as décadas 60 e 70 era considerada de inegável qualidade. Os colégios públicos eram referência de ensino e reconhecidamente melhores que os particulares, tanto que havia processos seletivos concorridos para o ingresso nesses estabelecimentos. Hoje, o ensino público é tido como de qualidade eminentemente inferior em relação ao particular e está desacreditado em muitos aspectos. Inclusive há uma matéria no site do Jornal Pessoal, publicada em maio de 2008, onde você conta um pouco da sua experiência no Colégio Paes de Carvalho e trata dessa transformação educacional nos seguintes termos:

A convivência entre pessoas de tão diferentes origens, formações e mentalidades, colocadas em competição ou cooperação, era a melhor contribuição da escola pública à qualificação individual dos seus frequentadores e ao bem comum (impossível de se repetir em locais homogêneos ou discriminatórios, como as escolas particulares mais procuradas atualmente). Mesmo sujeita a distorções, essa relação iria depurar qualidades, caracteres e personalidades. Seria fecunda. Até que a qualidade desapareceu e tudo desmoronou. É o estado atual da arte.

Diante desse quadro, quais fatores você identifica que foram preponderantes para essa involução tão acentuada na esfera pública de ensino?

L.F.P. – No Brasil gasta-se pouco com a educação, mas pior do que gastar pouco é gastar mal o pouco. Gasta-se muito em instalação física, mas não no funcionamento da escola. Por vezes se tem a instalação física da escola, mas o professor não aparece, não dá aula, ou não tem professor, ou não há cadeiras… A obra física é a mais cara e é a que gera maior possibilidade de desvio de recursos públicos. Então por isso se constroem muitas escolas, às vezes em número proporcionalmente maior do que a contratação de professores com qualificação.

Quando o ensino era majoritariamente público, a desigualdade no ensino se revelava pelo fato de que havia escolas boas para quem tinha maior capacidade monetária, maior poder, influência política, enquanto as demais pessoas da sociedade muitas vezes abandonavam os estudos; no entanto, havia uma meritocracia. Por exemplo, no Paes de Carvalho pessoas humildes cresceram em função do mérito que elas tinham, vencendo todas as barreiras e aproveitando a convivência com alunos mais qualificados em função de esses terem vindo de famílias que puderam colocá-los nas boas escolas sempre. Na sala de aula era comum se ter pessoas como um atual advogado que se tornou um dos maiores advogados do Pará junto com outras pessoas que também se tornaram bons advogados posteriormente, sem ter nenhuma das condições que aquele aluno teve.

O mérito, então, era uma porta aberta para se destacar, e isso ocorria no panorama nacional. Pode-se citar o exemplo do André Rebouças que era um negro e foi um grande empresário no Segundo Império. Machado de Assis, um mulato, é considerado o maior escritor brasileiro. É claro que isso não significa que não existia o racismo, ele existia, mas aquelas pessoas de qualidade acabavam por se impor a despeito da sua raça, da sua cor ou mesmo de sua condição social.

Com esse populismo, houve um nivelamento por baixo. A cota, por exemplo, que foi saudada como uma medida correta pra eliminar as desigualdades sociais no Brasil, que são brutais, criou uma distorção. O cotista é discriminado quando entra na universidade, porque passa a ter a “turma dos cotistas”, já que ele tem um rendimento menor do que o não cotista; e o próprio cotista, com a experiência dentro da universidade, já está se autodiscriminando. Na Federal, nesse ano, para os cotistas o curso mais concorrido foi Educação Física, com em média 128 por vaga, enquanto que para os não cotistas o curso mais concorrido continua a ser Medicina, com aproximadamente metade dos alunos por vaga. Então, o cotista já está procurando os cursos mais fáceis, porque ele está vendo que há uma evasão enorme daqueles que não conseguem continuar; isso acontece porque não basta entrar na Universidade, tem que ter dinheiro para comprar os livros e para ter acesso a uma série de coisas que eles não vão ter.

Portanto, uma política sensata deve investir muito nos ensinos fundamental e médio. Se o aluno não tiver condições, deve receber uma bolsa de auxílio. Porque muitas vezes o aluno até tem uma boa escola, mas é incrível a sua desqualificação.

Por exemplo, eu fui homenageado em duas escolas públicas de ensino médio daqui e estive lá. Eram turmas que queriam demonstrar agradecimento pelo Jornal Pessoal. Eu acredito em que foi o professor que fez isso, pois quando eu fui lá participar da solenidade e da homenagem, as duas turmas fizeram a mesma coisa, disseram as mesmas palavras, e houve vários momentos em que eu nem mesmo entendia o que eles estavam dizendo, pois nem eles sabiam o que estavam falando. Alguém deve ter dito o quê e como deveria ser dito, mas não havia coordenação lógica nem sentido lógico nas frases. Eu fiquei chocado porque muito provavelmente se tratavam dos melhores alunos das turmas, fazendo uma homenagem para o Jornal Pessoal – o que me emocionou muito –, mas não conseguiam expressar aquilo que queriam dizer. Por quê? O professor por vezes sabe apenas um pouco mais do que o aluno (quando sabe), não tem tempo para se dedicar, tem que fazer várias atividades ao mesmo tempo, não há um estímulo à leitura… O lado ruim do computador afastou a relação da figura do leitor com o livro, e o livro, apesar de tudo o que se diz, ainda é a forma fundamental de acesso à cultura.

Essas mudanças que você relatou certamente não ocorreram despropositadamente, mas foram construídas por determinados atores com determinadas intenções no decorrer do tempo… Percebemos até mesmo que dentro do contexto da ditadura militar as políticas educacionais sofreram drásticas mudanças, a ponto de se ter uma educação de qualidade em um primeiro momento e depois disso o setor educacional ser cada vez mais relegado a segundo plano. Você conseguiria pontuar de que modo esses interesses políticos foram se transfigurando na direção da desvalorização do setor educacional, e como isso afetou a educação na Amazônia?

L.F.P. – Bem, dentro da ditadura há dois momentos. De 1964 a 68 é um clima, uma situação. Com o AI-5 no dia 13 de dezembro de 1968 muda tudo; aí temos a ditadura sem disfarce, total, assumida. E com a ditadura assumida, a reforma educacional que já vinha dos anos anteriores – desde 1966 –, a reforma “MEC-USAID”, foi implantada. Ela foi implantada até com alguns objetivos nobres, como, por exemplo, o de acabar com o bacharelismo no Brasil. Todo mundo queria ser bacharel e determinados bacharéis não tinham a mesma utilidade do passado, não tinham mais uma função técnica; era papel sobre papel.

Estávamos no início do “milagre econômico”. Um milagre artificial, porém um milagre econômico, com taxa de crescimento acima de dez por cento ao ano, algo que nunca mais houve no Brasil. Precisava-se de mão de obra qualificada na indústria, então houve privilégio para os cursos técnicos. Foi uma era em que se abriram muitos cursos técnicos para qualificação de marceneiros, mecânicos, metalúrgicos, petroleiros, etc., que era uma mão de obra necessária para a realização dos projetos de impacto do modelo econômico brasileiro no contexto do milagre econômico dos anos 70.

Depois, houve a tentativa de universalização do ensino superior e aí começa a distorção que nós estamos vivendo até hoje. Ao invés de o governo fortalecer os ensinos fundamental e médio com colégios de qualidade, com algumas experiências que ainda são isoladas no Brasil – como as escolas de tempo integral, em que a criança entra às oito horas na manhã e sai às cinco horas da tarde, mas com o pleno uso desse horário –, houve programas como o PROUNI visando a aumentar as vagas na universidade pública em menor escala e na privada em maior escala através de subsídios. Vou dar um exemplo bem doméstico: um aluno passou numa universidade particular de Belém através do PROUNI e depois achou que o campus era muito longe; fez, então, o segundo PROUNI para estudar numa faculdade mais próxima à casa dele, sendo que era filho de um comerciante. Isso mostra, então, que o PROUNI é o Estado subsidiando e aumentando o lucro das universidades privadas, e a multiplicação dessas universidades e faculdades particulares é uma fonte de vícios terríveis na educação, o que me faz questionar sobre que tipo de qualificação esse aluno vai ter. Não me refiro ao mercado, ao conhecimento técnico, mas a que tipo de qualificação humana do conhecimento ele vai ter nesses cursos feitos a “toque de caixa”, com um sentido comercial evidente.

E o efeito mais grave dessa universalização nós tivemos neste ano, quando das duzentas universidades mais importantes do mundo passou a não se ter nenhuma brasileira, já que a USP caiu de posição; sendo que setenta e sete dessas duzentas são americanas e quinze são da Coréia do Sul. O efeito desse populismo e desse esquema de financiamento de alunos particulares e de universidades particulares é esse. E para recuperar isso vai levar gerações, porque esse resultado vem dos erros acumulados durante todos os anos anteriores. Tudo o que se fizer na atividade produtiva não vai ter o efeito desejado com esse populismo na educação.

Tendo em vista esse quadro da educação pública atualmente, quais necessidades educacionais – especificamente na Amazônia e no Estado do Pará – você classificaria como mais importantes e/ou urgentes? Por quê?

L.F.P. – Há vários anos eu repito, periodicamente, uma sugestão para que a Universidade Federal do Pará tenha um núcleo de conjuntura. Nesse núcleo haveria vários professores das mais diversas áreas de ensino e pesquisa e eles ficariam de plantão ao longo de um dia para atender às demandas da sociedade – às perguntas da sociedade – sobre todos os setores, feitas através de telefone, internet, carta, pessoalmente ou através de transmissão, pois eles ficariam conectados na rádio universitária. Então, tudo o que as pessoas quisessem saber sobre a Amazônia, esse núcleo responderia. E ao mesmo tempo divulgaria tudo o que a Universidade está fazendo em tempo real. Poderiam ser, por exemplo, quinze profissionais reunidos em um dia entre oito horas da manhã e seis horas da tarde, representando todas as áreas do conhecimento; ao final, todos ganhariam um benefício com essa participação. E todos os dias haveria esse atendimento.

O objetivo disso é evidenciar que a Universidade tem que atender às demandas da sociedade. Então, esse grupo teria que responder a qualquer tipo de questionamento proveniente da opinião pública. Se porventura o profissional não soubesse a resposta, deveria admitir e dar um prazo à pessoa para retorno com a resposta àquela pergunta. Ao mesmo tempo, deveriam informar o que a Universidade está fazendo em prol da comunidade na qual as pessoas estão inseridas. O objetivo é muito maior do que aquele núcleo em si: consiste em mostrar para a Universidade o quanto ela está desligada da realidade – se ela não responde à pergunta. E o pesquisador, que está escondido na sua cátedra, no seu curso, na sua pesquisa, e que só fala para os seus pares quando apresenta suas teses e trabalhos, terá que ir para o núcleo, terá de ir lá e responder aos questionamentos.

Considero que isso geraria um efeito cascata, um efeito sísmico sobre toda a Universidade, para tirá-la do comodismo, porque hoje a Universidade é o aprisionamento do intelectual público.

A Universidade detém a maior quantidade de intelectuais do que qualquer outro lugar dentro do contexto onde está inserida, então se deve perguntar: o que esses intelectuais estão fazendo em benefício da sociedade? Qual é o conhecimento aplicado que eles têm? Cada vez mais eles estão vivendo no seu círculo fechado, o círculo dos sábios. Os sábios se fecham e não são contestados.

Em anos que eu apresento essa proposta nunca ninguém me disse que eu sou um louco, que isso não é possível ou desmoralizou a tese. Nunca. Fica um silêncio absoluto. É por isso que de tempos em tempos eu repito a proposta, porque ela é uma prova da renúncia explícita do intelectual de ser público.

E no que se refere ao ensino público básico, quais são os problemas que você identifica como mais prementes para serem solucionados e por quê?

L.F.P. – O grande problema da escola diz respeito a onde ela está. Há escolas hoje que não conseguem mais funcionar na periferia, porque a insegurança é total. Você não pode criar núcleos de torres de marfim quando a torre não é de marfim nem é torre; ela está exposta. Qualquer um pode entrar na escola e assaltar, matar… Há uma violência em torno. Então, a educação não pode desconsiderar o ambiente em volta, porque há lugares em que os professores não vão dar aula mesmo. E cada vez mais há episódios em que o aluno ataca o professor, o aluno ataca outro aluno, violência, mortes, casos em que o professor é ameaçado se não der a nota que o aluno quer, etc. Perdeu-se o respeito, perdeu-se o poder institucional da educação.

O primeiro passo seria, então, restabelecer a autoridade. Mas restabelecer a autoridade não é colocar polícia na escola, é o Estado dar suporte ao seu representante, que é o professor. O professor, então, teria um salário melhor, poderia se vestir melhor, poderia se qualificar melhor para que, a partir dessas condições – levando em conta que aqueles que não buscarem a qualificação ficarão marginalizados –, ele possa novamente, talvez, recuperar a autoridade sobre os alunos.

E a escola passaria a fazer parte de um conjunto de atividades integradas àquele lugar, sendo que quanto mais problemático fosse o lugar mais essa integração seria necessária. Essa integração se daria por meio de atividades que trouxessem a família para participar da escola, que criassem uma proteção que não é a proteção dos muros, da cerca elétrica… é a proteção das pessoas.

A criminalidade tornou o problema da escola, seja de ensino fundamental ou médio, um problema de segurança pública. O problema educacional não é um problema de polícia, é um problema de Estado, das autoridades educacionais. O Estado não pode deixar a escola isolada e abandonada e achar que ela tem autoproteção. Ela não tem.

Além disso, na escola de hoje o aluno impõe ao professor que ele não exija nada, e o esquema pedagógico consiste em que o sujeito não fica reprovado nem que ele queira. Conheço um caso em que o aluno ficou de recuperação em todas as disciplinas e passou, com base nessa orientação de não deixar ninguém para trás com a finalidade de apresentar números. É a realidade quantitativa da educação.

Se você fosse o detentor, hoje, da máquina do poder estatal e esti-vesse no comando da Secretaria de Educação do Estado, por exemplo, quais seriam suas medidas prioritárias e como você conduziria uma política para melhorar esse quadro?

L.F.P. – Em primeiro lugar se deve melhorar o salário dos professores, que é miserável. Mas aí vem a contestação de que não se pode aumentar o salário dos professores porque teria que aumentar o salário de todos os servidores públicos, e então se criaria um efeito dominó. Nesse caso, deve-se criar um salário indireto: conceder bolsas aos professores, uma cesta de maior valor, um financiamento subsidiado para a compra da casa própria, um subsídio estatal maior ainda para a compra de livros individuais (com o Estado custeando 50% do valor do livro), entre outras medidas. Tudo isso em razão da integração entre a escola e a sociedade.

Fazer também um levantamento de todos os lugares críticos onde há escolas públicas para a instalação de centros de múltiplos esportes nesses locais, ao lado das escolas. Mas não fazer de qualquer jeito e com material de segunda categoria só porque se trata do povo, como muitas vezes se faz, mas fazer um centro de primeiro mundo, o melhor que pode haver, para natação, atletismo, basquete, vôlei, futebol, enfim, para todas as modalidades. E principalmente com muita segurança, com fichas para todos os frequentadores e instrutores qualificados, para que a criança e o adolescente tenham o estímulo de crescer.

Com isso, criar uma rede de centros de lazer e esporte em torno das escolas nos lugares críticos. Todos localizados na periferia, nenhum no centro da cidade ou nos bairros privilegiados, para o povo sentir que o Estado tem respeito por ele, que está dando para ele aquilo que daria para os filhos dos barões, sem qualquer diferença entre renda ou cor da pele. Todos aqueles que morassem num determinado perímetro do local teriam direito a praticar todas as modalidades e de graça, com direito a instrutor, acompanhante, professor, etc., de modo que o indivíduo, se tiver aptidão, possa se desenvolver como atleta. O objetivo é criar um estímulo para o ser humano desenvolver suas aptidões pessoais.

Outra coisa que tem que ser feita com competência pedagógica é fazer as crianças circularem pela cidade, fazer passeios com as crianças para conhecerem a história de Belém, que, infelizmente, muita gente não conhece e nem quer saber.

Percorreriam a cidade em um ônibus escolar bom, com ar-condicionado, com instrutores e orientadores para andar pela cidade e parar em cada um dos pontos relevantes para a história de Belém, tendo uma pessoa pedagogicamente preparada para tornar atrativa a narrativa da história da cidade. Todas essas medidas seriam voltadas para aflorar as vocações e as competências dos alunos.

E quanto ao modelo de ensino, em sua opinião qual seria o mais adequado para uma aprendizagem efetiva?

L.F.P. – É o modelo mais antigo do mundo: o método grego. Promover o aprendizado através de conversas em um lugar aberto, como se fosse um areópago, ao ar livre e com os professores dialogando com os alunos. Mas para tanto deveria haver uma seleção dos professores para avaliar quais seriam qualificados para tal papel, como aquele professor que ama o que faz, pois aquele que ama o que faz em geral faz melhor do que qualquer outro.

Eu acho que a gente subestima a capacidade das pessoas de perceber certas coisas por falta do meio adequado de transmissão do conhecimento. Muitas vezes há um autoritarismo do professor em achar que sabe tudo e que não precisa ouvir. Por isso, o debate, o desafio é o melhor método que se tem. Se o professor é honesto e não souber responder a uma pergunta, deve reconhecer que não sabe e buscar esse conhecimento, até porque nenhum professor é obrigado a saber tudo. Por isso, eu considero que o melhor método de ensino continua sendo o velho método dialético das academias gregas. Continua sendo o mais relevante e o mais eficiente.

Mudando um pouco de tema, como foi sua experiência na militância estudantil?

L.F.P. – Eu fui presidente do Grêmio Estudantil no Colégio do Carmo, participei das eleições pro Centro Cívico Honorato Filgueiras no Paes de Carvalho, participei da ocupação das universidades em 1968, participei da primeira passeata dos estudantes depois de 1964 aqui em Belém. Quando fui para São Paulo, fui presidente do Centro Acadêmico da Escola de Sociologia e Política e fizemos também algumas publicações estudantis… Eu sempre tive uma militância muito forte dentro dos ambientes escolares e acadêmicos.

Nesse período todo em que você atuou no movimento estudantil, quais você destacaria como os principais anseios e as mais relevantes bandeiras de luta?

L.F.P. – A principal foi a reação contra o acordo MEC-USAID. Aqui em Belém iria passar o general Costa e Silva, presidente na época, e nós tínhamos recebido pouco tempo antes o texto do acordo MEC-USAID. Eu passei dois dias e duas noites escrevendo um texto para ser entregue ao general Costa e Silva. Era em nome de uma comissão paritária de alunos e professores e eu fiquei encarregado de fazer o texto final, tendo em vista que eu já trabalhava em jornal. Então eu fiz o texto final e terminei dois dias depois de ter começado a fazer lá na faculdade, um pouco antes da chegada do Costa e Silva no aeroporto. Corremos para lá para entregá-lo, mas não pudemos entregar diretamente ao presidente. Entreguei ao ajudante de ordens dele que prometeu que entregaria ao presidente. Nesse momento eu subi para tomar um café e, quando eu desci novamente, encontrei o nosso relatório jogado na lata de lixo! Um trabalho enorme da Comissão Paritária, terminado depois de eu ficar escrevendo dois dias sem fechar o olho, para o cara jogar no lixo…

Dentre essas manifestações ocorridas no Pará, quais tu consideras que foram mais significativas?

L.F.P. – Aqui em Belém mesmo eu considero como mais importante a ocupação das universidades e das faculdades em 1968, quando os estudantes ficaram por dois ou três meses ocupando as faculdades para se opor ao ensino pago e à política de estímulo às universidades particulares.

Após toda essa tua vivência na militância estudantil, e levando em conta as bandeiras de luta e a forma de se manifestar, como tu analisas o movimento estudantil hoje?

L.F.P. – Todas as lideranças, de uma forma correta ou incorreta, tinham ideais. A política estudantil era a política do ideal, em contraste com a política profissional, partidária, que já é uma política em geral fisiológica. Hoje essa diferença não existe mais.

O dinheiro que entra na UNE é uma quantia muito alta e de vez em quando surgem denúncias de corrupção, o que em épocas anteriores nem os maiores inimigos do movimento poderiam imaginar que um estudante pudesse levar algum tipo de vantagem pecuniária por dar carteiras de meia entrada; isso criou um sistema poderoso de dinheiro e de influência. Primeiramente nós nunca imaginamos que isso seria possível, ou seja, entrar tanto dinheiro de um ato de concessão do poder público para entidades estudantis.

O que eu vejo hoje de preocupante é essa profissionalização e também a excessiva partidarização na política estudantil. A partidarização sempre houve, mas anteriormente os adversários dialogavam, tinham uma relação amistosa. Os vários grupos diferentes e as disputas mais acirradas – o que é uma característica dos estudantes – nunca impediram que depois as pessoas se abraçassem, se cumprimentassem. Hoje há um antagonismo profissional e agressivo. Jamais nós faríamos o que se faz hoje em dia, como, por exemplo, ocupar a USP e depredar a reitoria, cometer atos de vandalismo; isso jamais se fez. Acho que política suja entrou nas entidades estudantis e elas passaram a ser vinculadas a interesses muito mais poderosos do que a defesa de causas. Perderam a ingenuidade, perderam a virgindade. Não tem mais um ideal.

Passando agora a tratar mais especificamente do tema do projeto, o direito à memória tem ganhado muita relevância nos últimos tempos, principalmente devido à instalação de várias Comissões de Verdade, Memória e Justiça com o intuito de esclarecer as violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar e de impedir, também, que isso venha a se repetir no futuro.

No que se refere à educação, a invocação às memórias tem sido importante para tentar delinear melhor a história das políticas educacionais e esclarecer o caminho percorrido para que o ensino público tenha chegado ao preocupante estágio em que se encontra, de modo a fortalecer a identidade da região e evitar a repetição de políticas anteriores que foram prejudiciais ao setor. Na Amazônia, entretanto, temos dificuldade em encontrar fontes bibliográficas e/ou científicas sobre o tema.

Por isso, alguns grupos de pesquisa dentro das universidades públicas estadual e federal do Pará têm buscado resgatar a memória da educação na Amazônia. Esse projeto da SDDH, por sua vez, também busca contribuir com esse resgate e essa reflexão acerca da evolução da política educacional no Estado. Diante disso, como você enxerga essas iniciativas de retomada da memória e em especial da memória educacional na Amazônia Paraense?

L.F.P. – A memória é tanto mais precisa quanto mais próxima ela estiver da fonte primária. A fonte primária pode ser um documento oficial, um documento não oficial, um testemunho oral, mas quanto mais próxima ela estiver do acontecimento mais ela merece ser considerada fidedigna. O grande problema que eu vejo hoje nesses esforços de restauração na memória nacional é que se vai às fontes secundárias e não às fontes primárias. Em muitos casos não existe a fonte primária, mas em muitos outros existe, e não se vai a ela ou por falta do empenho necessário ou por falta de uma metodologia adequada, ou ainda por conveniência.   

Recentemente houve o primeiro ato da Comissão da Verdade aqui em que se restabeleceu o mandato do Aurélio do Carmo, do Hélio Gueiros, e eles passaram a ser os defensores da democracia, aqueles que resistiram ao golpe, e isso é uma inverdade total. Aí eu publiquei dois artigos mostrando que não foi assim não… E ninguém contestou. Mas o ato oficial feito na Assembleia Legislativa continuou. Então quem não for consultar o Jornal Pessoal vai ficar com aquela informação, e é justamente esse o problema na restauração da verdade: como ela é promovida. Se ela vai aos documentos e deixa que o cidadão consulte o documento ou se ele é elaborado e reelaborado de uma forma a conduzir a reconstrução da história num determinado caminho.

Eu vi um documentário sobre a Comissão da Verdade e fui a um debate no Ministério Público Federal onde eu mostrei que aquilo ali era uma exaltação do presidente da Comissão da Verdade, e não a preocupação de mostrar os documentos que permitam à gente refletir. Um dos problemas teóricos do ensino hoje é que uma parte dos professores de esquerda assumiu o controle até dos livros didáticos e passou a contar uma história que é atrativa, por ser a história crítica, mas ao fazer a crítica essa leitura impede que as pessoas julguem a partir da consulta aos documentos primários. Ela é tendenciosa porque reconstitui numa direção, numa linha interpretativa, e o cidadão lê aquilo já conduzido, quando ele poderia ter a alternativa de ele próprio ter acesso ao documento primário.

Eu acho que esse esforço [de pesquisar sobre a memória] é um esforço de grande significado e particularmente no caso da falta de memória da educação, esse problema não se limita à educação. Para os amazônidas, a história da Amazônia é desinteressante. Foi criado um estigma em relação a isso de que é uma história chata, que não tem heróis, não tem grandes batalhas, não tem nada importante. E não é verdade.

Por sinal, no último Jornal Pessoal eu falei sobre um caso brutal de contraste. O Lauro Sodré era uma escola de artes e ofícios para o ensino médio, aquele monumento! Feito numa época em que os pais da República eram reformistas. Hoje é o Palácio do Tribunal de Justiça do Estado. Então, o lugar que era uma escola se tornou um palácio do tribunal, e nesse tribunal um dos primeiros atos de quem transformou o Lauro Sodré em Palácio do Tribunal de Justiça foi tirar a passarela usada pelo povo para atravessar de um lado para o outro da Avenida Almirante Barroso, num lugar que era importante para o povo. Destruíram a passarela e agora o cidadão tem que andar uma distância muito maior para encontrar a primeira passarela, e aquele que quer ir para o tribunal e que é do povo – que usa ônibus – tem que ir a uma parada, voltar uns trezentos metros e não pode subir a escadaria do Palácio da Justiça, quando anteriormente os estudantes pobres de artes e ofícios subiam por aquela escada, que é a entrada principal. Aquela entrada está vedada por motivo de segurança, e foi também o motivo de segurança que foi usado para tirar a passarela. Não há nem ao menos uma proteção contra o sol para o cidadão, porque a entrada permitida é para entrada de carros e não para a entrada de pedestres.

Então, que involução nós tivemos de lá para cá em cem anos! Quando se imaginaria hoje fazer uma escola para o povo daquele nível? O que é justamente o que eu peço para ser feito, um centro de esportes e lazer de primeira qualidade para o povo. Aí vem o argumento de que o povo destrói, mas nas excursões de brasileiros para os Estados Unidos os brasileiros são conhecidos por lá como os vândalos, aqueles que destroem os hotéis e etc., e são todos “gente de bem”, com condições financeiras. Já para um cidadão do povo, ao contrário, se der para ele um produto de qualidade e que ele não vai pagar por isso, é claro que ele vai conservar, porque ele não terá essa oportunidade outra vez.

De que modo o material produzido a partir dessas reflexões pode contribuir para uma evolução qualitativa da educação pública no Estado?

L.F.P. – É difícil dizer, mas acho que a publicação do material em um livro é importante se for considerada não a história institucional, mas a história dinâmica. Por exemplo, eu citei o caso do Lauro Sodré, mas poderia falar do Colégio Gentil Bittencourt. O Gentil, com toda aquela pompa, foi criado para órfãs pobres. Era do poder público e não de uma ordem religiosa – a dos carmelitas. Sendo anteriormente do poder público, como se inverteu essa ordem e hoje em dia é uma escola particular e de elite? E aquele prédio foi construído naquelas dimensões para o povo, para as órfãs pobres da cidade…

A história, quando passa a ter carne e osso, se torna interessante. Não é uma história conceitual, não é uma história institucional nem uma história de formalismos, mas uma história das pessoas. A grande dificuldade quando você recupera a memória é tornar a memória interessante para aquele que vai ler. Então, se trata da forma como você faz a pesquisa e também de uma coisa importantíssima que é uma das distorções em quase tudo que se faz sobre memória: fazer um nivelamento entre o passado e o presente, olhando-se para o passado com os olhos do presente. Isso distorce a história.

Por exemplo, diz-se que o padre Antônio Vieira foi a favor da escravidão. Se uma pessoa olhar com os olhos de hoje para lá, tudo bem, é verdade. Mas se for olhar a história no momento em que o padre Antônio Vieira viveu, vai ver que ele tinha uma estratégia para evitar que os índios fossem escravizados, e a única estratégia de que ele dispunha – considerando-se os meios da época – era a escravidão de negros. Portanto, não é que ele fosse um escravocrata de negros propriamente, mas na realidade ele queria evitar a escravidão dos indígenas que estavam lá, tanto que os negros tinham que vir de outro lugar, o que era mais complexo e mais caro.

A história tem que ser olhada com os olhos daquele momento. No entanto é claro que se admite uma revisão da história, pois às vezes naquele momento as pessoas não tiveram acesso aos documentos que permitiriam vê-la de outra maneira. Mas o que não de pode admitir – como tem sido a regra nos livros de geografia e de história que circulam agora – é reduzi-la ao tempo atual.

Desse modo, a publicação nesses termos com uma pesquisa rigorosa, bem escrita, que considere a história como formada por pessoas de carne e osso, já permitiria suscitar discussões que vão ter efeitos muito maiores do que simplesmente a divulgação do livro.