Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Novo jornalismo entrega-se ao véu da liberdade

Não é mais nenhuma novidade o fato de que todo cidadão pode ser produtor de informação neste mundo de tecnologias digitais e de redes sociais. O tempo do jornalismo governado pelos jornais e pelos jornalistas profissionais deu lugar a um sistema descentralizado, desterritorializado e multifacetado, em que qualquer indivíduo pode atuar como protagonista do processo da informação e da comunicação.

A verdade dos tempos está na evidência de que o novo imperativo transforma, de maneira radical, os pressupostos e os fundamentos do modo clássico do fazer jornalístico. Isto posto, verificamos que, além de instituir o regime de liberdade no sistema de codificação e de codificação dos discursos, o jornalismo-cidadão estabelece uma mudança generalizada na estrutura dos sistemas de lógica, de causalidade e de conhecimento.

A partir do momento em que qualquer indivíduo pode dizer qualquer coisa para qualquer audiência – do sujeito ao grupo ou à massa indeterminada –, a essência da nova ordem informacional deixa de ter o compromisso formal com a ética, com a verdade e com qualquer nexo causal. A realidade transforma-se no discurso da realidade e a veracidade dos fatos é substituída pelo discurso de verossimilhança. Não há, em linhas gerais, necessidade de obediência a um sistema de causa ou de consequência na construção das narrativas.

Um universo sem totalidade

O mais importante neste processo passa a ser falar, contar, revelar, comunicar, compartilhar. Não há, portanto, dentro deste sistema de construção social dos discursos, qualquer tipo de ligação ou de relação entre o produtor da informação com os princípios lógicos da dialética, ao modo como Hegel, Marx, Kant e tantos outros pensadores defendiam.

Em sua essência, na forma clássica, a dialética pressupunha (a) contradição, no sentido de que tudo existe, ao mesmo tempo, em um estado de ausência e de permanência. Compreende, ainda, ao modo grego antigo, (b) a arte do diálogo, e o natural processo de (c) transformação de todas as coisas, no sentido de que nada permanece sempre como é, mas que vive em uma condição de (d) fluidez, onde o ser é sempre um vir-a-ser. Além disso, existem os pressupostos universais (e) da passagem da quantidadeà qualidade, (f) da interpenetração dos contrários (g) e da negação da negação.

O comum entre todos estes princípios ativos da dialética envolvem os fenômenos da transformação, do movimento e da fruição, onde a conexão entre causa e efeito vive em um estado intransitivo de ebulição, de tensão e de inquietação. A tese pressiona e exaspera a antítese que pulsa, freme e se alarga, com todas as forças, até gerar uma síntese líquida, fluída, incandescente, pronta para misturar e combinar todas as causas e consequências e, com isso, acender e reacender a dinâmica viva da contradição.

Isto corresponde, de modo muito intenso, ao que a nova ordem comunicacional e informacional das mídias digitais e virtuais oferecem à sociedade humana. A priori, podemos dizer que as TICs estabeleçam um universo sem totalidade (Levy), sem centro e sem origem e organicidade. Não há uma estrutura que funcione de maneira sistêmica para todos os indivíduos e para a sociedade, à medida que não é mais a mídia que governa e controla o acesso, a mediação e o consumo dos discursos sociais. O cidadão pode fazer ou desfazer o que quiser, da forma que melhor julgar, os caminhos da informação e da comunicação neste novo universo tecnológico.

As estruturas das verdades mais profundas

Desta forma, não podemos mais falar, dentro de uma visão escatológica moderna, numa organização fundada no princípio da origem, da causa ou determinação. Tudo está assentado na lógica da dispersão e está sempre à disposição para ser trabalhado de acordo com os pressupostos inalienáveis da liberdade, segundo a percepção e a vontade do produtor da informação e da comunicação. Note-se, aliás, que não há absolutamente nenhum pecado nesta prática. Todos sonhamos, afinal, com o dia em que os impérios midiáticos e a tirania da comunicação seriam mortalmente abalados pela insurreição da tecnologia e da sociedade, empoderada pelo exercício irrevogável da liberdade de expressão e da liberdade de comunicação.

Não podemos esquecer McLuhan. A tecnologia transformou este sonho em realidade. O que antes estava nas mãos de poucas pessoas, no totalitário sistema de um-para-todos, assistiu a assunção e a vingança do modelo do todos-para-todos. Neste sentido, mais uma vez a tecnologia ditou o rumo da história humana, apesar de todos os paroxismos que possa ter gerado na estrutura social, cultural e comunicacional.

Como diria o velho ditado, não há almoço grátis. Tudo tem seu preço. Não há inovação sem transformação assim como não há movimento histórico sem reformas na própria essência do indivíduo e da sociedade. A universalização da informação e da comunicação, com sua lógica de democratização e de socialização, mexe com as estruturas das verdades mais profundas da sociedade. Uma delas parece ser aquela que prioriza a geração e a distribuição da informação em detrimento da compreensão e do sentido desta mesma informação. O pêndulo da realidade oscila do governo, do controle e da administração da verdade para o polo da emissão da informação.

A lógica interna de cada pequena realidade

Em poucas palavras, podemos dizer que, ao que parece, não há mais zelo ou cuidado no relato social da realidade. Qualquer um diz o que quer dentro daquilo que ele acredita ser a verdade objetiva ou subjetiva dos fatos. A necessidade da explicação, da contextualização, do detalhamento e do respeito ao nexo causal em todas as coisas do mundo deixou de ser um fundamento da informação. O efeito mais imediato é o desaparecimento do porquê na estrutura da informação jornalística, formal ou informal. Nem o jornal nem o cidadão buscam orientar a informação a partir de uma organização lógica e orgânica dos fatos sociais. O que importa agora é utilizar e exercitar o poder da fala e, com isso, participar do universo da informação e da comunicação.

A necessidade da causalidade, da origem e da natureza ontológica dos fatos foi abolida de forma quase universal e absoluta. Os fatos passaram a falar por si próprios. Não há mais sentido ou qualquer tipo de explicação para os fatos terem emergido, no espaço humano, de uma hora para outra do modo como emergiram. O porquê deixou de ser uma prerrogativa e passou a ser uma mera circunstância. A inclusão do porquê na informação demandaria, afinal de contas, a necessidade da busca da contextualização e da explicação para os acontecimentos humanos. Num mundo sem paradigmas, sem referências e sem verdades universais, os novos produtores da informação dedicam-se coerentemente apenas a informar. A razão dos fatos não diz respeito, em tese, ao comunicador. Ele já está encarregado de comunicar. Gerar lógica e explicação não lhe dizem mais respeito.

Vê-se que há uma nítida obsolescência do jornalismo interpretativo em razão do triunfo social do jornalismo informativo e do jornalismo opinativo. Ninguém precisa mais interpretar nada, isto é, ninguém está interessado em aprofundar, detalhar, contextualizar e explicar a origem e a natureza dos discursos sociais.

Não há mais porque buscar-se o sentido das coisas e dos fenômenos sociais. O jornalismo clássico mal conseguia fazer isso. Não será agora o cidadão que tratará de anunciar os fatos e de, ao mesmo tempo, explicá-los para a sociedade. Isto agora é da conta apenas do receptor das mensagens. Na nova ordem comunicacional e informacional, se o cidadão quiser, ele que trate de buscar entender a lógica interna de cada pequena realidade empacotada pela informação. Senão a informação valerá apenas como informação. Sem qualquer compromisso com a lógica da verdade.

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Leandro Marshall é professor universitário, pós-doutor em Sociologia, doutor em Ciência das Comunicação, mestre em Teorias da Comunicação e Especialista em Filosofia