Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo sem postura

Primeiro como repórter, depois como professor, nunca me preocupei em adotar uma postura jornalística, muito menos ensinar aos meus alunos o que ela fosse ou como adquiri-la. Mais tarde entendi que é um conhecimento e atitude moral que trazemos de berço e são lapidados na formação profissional, até assinarmos um contrato de trabalho. É quando colocamos nossas convicções no saco e adotamos a postura (prefiro chamar de pose) do empregador; vestimos sua camisa com a obrigação de suá-la, por mais incômodo que seja o modelo.

Na verdade, nosso crescimento e sucesso profissionais são resultado deste permanente conflito entre o que somos e o que não desejamos nos tornar. É isto que nos move a escrever, registrar, discutir, enfim, nos dá a postura que, nada mais é que saber dosar ética e estética (não é puro acaso que as palavras estética + ética estejam unidas aqui) e adotá-las como ponto de apoio e equilíbrio quando nos dispomos a pensar o mundo.

Nos últimos dez anos a profissão de jornalista se transformou num campo minado, nas redações, nos estúdios, nas ruas. Com a expansão das redes sociais e a popularização das camcorders, começamos a questionar nossa formação, aprendizado, posicionamento e visibilidade social como detentores de um saber. Foi quando percebemos que à velha lição já decorada de que somos intérpretes do mundo, deveríamos acrescentar uma mais real e urgente: agora precisávamos reconquistar nosso lugar nesse mundo onde não éramos mais diferenciados pelos equipamentos que usássemos; nem pelas opiniões que sustentássemos. Não nos bastasse estar sujeitos às posturas dos empregadores, tínhamos que lidar com um público que expunha e muitas vezes, sobrepunha suas opiniões às nossas; que de simples ouvintes, leitores ou espectadores, assumiam o papel de colaboradores com textos e imagens que, em muitas situações, superavam as nossas “profissionais”, em velocidade, contundência e clareza.

Somos frágeis

Foi quando, queiram ou não, nos descobrimos pobres mortais. O que nos diferenciava, ou melhor, nos diferencia num mundo em transformação permanente, em que todos acessam dados, sabem decodificá-los e disseminá-los? Que postura adotar em relação a isto? Ir contra, ampliar as discussões, aprofundar os debates, assumir que o jornalismo mudou, fazer uma reavaliação do que somos e podemos?

Ao ver a imagem chocante e emblemática do cinegrafista da Rede Bandeirantes de Televisão, Santiago Ilídio Andrade, caindo emborcado sobre a câmera, encontro algumas respostas, ao refletir sobre o que, naquele contexto, o diferenciava de um colaborador. A câmera nos ombros? Não. Hoje, qualquer cidadão comum pode portar um celular ou uma camcorder, seja ele profissional ou não. O que o diferenciava, então? A camisa da empresa que o empregava? Ora, Santiago vestia jeans e camiseta polo como qualquer cidadão comum. Um uniforme com a logomarca da Band poderia ter salvo sua vida ou o exporia mais claramente como alvo? Seria aconselhável um colete à prova de balas, considerando a experiência da Band com a morte do cinegrafista Gelson Domingos da Silva, morto por um tiro de fuzil na Favela de Antares, zona oeste do Rio de Janeiro, em novembro de 2011, pelo uso inadequado de um colete à prova de balas? Um capacete de proteção evitaria a tragédia anunciada? São especulações admissíveis ou não, mas a julgar que naquele momento ele era identificado somente por um crachá visto por quem o abordasse de frente, todas as considerações e desconsiderações devem ser feitas. Exposto daquela maneira estava frágil. Como somos frágeis; como frágeis são todas as instituições não discutidas; como frágeis são nossos argumentos diante do que, hoje, seja pensar e informar o mundo.

Condenados à morte pública

Busco e encontro exemplos nas coletivas onde, antes a importância dos credenciados era avaliada pelos microfones modelo sorvete, direcionados para captar as declarações dos especialistas ou das autoridades. Hoje, não mais. Os velhos “sorvetes” tornaram-se ridículos diante dos celulares e dos iPads que captam sons e imagens com a mesma eficiência. Há, inclusive, uma inversão nas estratégias sobre as quais nossas ações são pautadas. Aprendemos, desde sempre, a ir para a rua, registrar o mundo e trazê-lo, na máquina, nos olhos, na razão, mais que no coração, para dentro de uma ilha de edição, onde vamos decupá-lo e interpretá-lo para um público que o espera ávido pela informação filtrada e analisada sob pontos de vista éticos e estéticos. Isto foi o que aprendemos e em que muitos ainda acreditam. Não é mais. Enquanto agimos assim, este mesmo público a que pensamos servir, age num contraponto inimaginável: ele já elaborou um plano; previu seus prós e contras e com o pacote formatado, etiquetado e endereçado, vai para as ruas. Enquanto voltamos, eles vão. Enquanto recolhemos, eles espalham.

Não nos preparamos para isto. As empresas não nos alertam sobre isto. Nossos equipamentos obsoletos não captam mais esta realidade; pesam nos ombros como fardos incômodos a nos cobrar outras posturas. Mudamos a pose ou estamos condenados à morte pública.

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Délcio Teobaldo é escritor, jornalista e autor roteirista da TVBrasil