Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Para compreender os linchamentos

Tudo começou – desde então – há vinte anos. Essa é a contradição fundamental da matéria “Tentativas de linchamentos de suspeitos de crime se espalham pelo país“, publicada pela Folha de S.Paulo (quinta-feira, 20/2). Cegada pelo que parece ser uma “novidade”, a reportagem perde a notícia: aprofundando-se no histórico, poderia aperfeiçoar a compreensão dos justiçamentos e, por esse viés, descobrir uma chave de interpretação para vários fatos políticos do Brasil contemporâneo.

Os jornalistas dizem que “tudo começou com um adolescente acusado de assalto (…)”, e que “desde então casos de justiçamento surgiram em todo país”. Referem-se ao linchamento do dia 31 de janeiro deste ano. Avançam daí para a entrevista com José de Souza Martins, “que há mais de 20 anos documenta linchamentos no país”. O desacordo entre os tempos não incomoda o jornalista. Subaproveitado, o sociólogo emite aspas superficiais. Com uma pauta mais consciente dos estudos feitos por ele, seria evidente uma alteração no caráter dos linchamentos de ontem e hoje, sua articulação com as figuras dos rolezinhos e dos black blocks.

Martins interpreta os linchamentos como “a ponta visível de processos sociais e da estrutura social”, sintomas de mudanças das hierarquias cultural e econômica, da corrosão da imagem do Estado e de um ideário político específico. Neste texto, resumimos as ideias de dois artigos do sociólogo: “As condições do estudo sociológico dos linchamentos no Brasil“ (1995) e “Linchamento: o lado sombrio da mente conservadora“ (1996), tentando sugerir pautas para futuras reportagens.

Tipos de linchamento

O sociólogo tem notícia de linchamentos desde o século 16, antes dessa palavra existir – ela só será criada no século 18, nos Estados Unidos, e seu uso se difundirá nos jornais brasileiros no final do século 19. A partir da experiência americana, se identificam dois tipos de linchamento: mob lynching e vigilantism. O primeiro é a reunião “súbita e espontânea” para “justiçar uma pessoa que pode ou não ser culpada do delito que lhe atribuem”. O segundo, como o nome sugere, implica na formação de grupos dedicados à vigilância, com o objetivo de “desencadear uma pedagogia da violência”, uma “pedagogia da ordem”.

Conforme Martins, o vigilantismo é raro no Brasil e secundário em relação ao mob lynching. Temos algo de novo ocorrendo, então, quando se noticia “Grupo de ‘justiceiros’ já teria 600 integrantes“ (O Dia, 12/2). É preciso, primeiro, entender quais as dinâmicas distintas que ocorrem nesse tipo de caso e, segundo, avaliar como o vigilantismo pode inspirar o mob lynching.

Ambos os tipos tem uma inspiração “conservadora e voltada para a preservação da ordem que se acreditava ameaçada”. Os mob lynching do Sul dos EUA tinham a função de “compensar” o desnível sentido por uma classe oligárquica submetida pelo Norte do país, abalada pelos ideais políticos que lhe eram impostos, como os direitos adquiridos pelos negros. Os vigilantes do Oeste procuravam estabelecer, sob uma aura de medo, uma moral puritana. No Brasil, a situação era diferente.

Mudanças de caráter

Se, nos EUA, os linchadores “pretendiam alcançar mais do que a própria vítima”, isto é, visavam a uma moral, no Brasil “o objetivo não é o de prevenir o crime por meio da aterrorização”, mas de punir “com redobrada crueldade” o criminoso em si (em que criminoso só pode ser entendido entre aspas, dadas as condições em que se julgam as culpas). “Aqui, o linchamento é claramente vingativo.” Novamente, o que vemos hoje é a mudança de caráter nos casos brasileiros.

Diz Martins: “No nosso caso, não há, ainda, um quadro de referência que permita situar e explicar imediatamente os linchamentos do período recente.” É de 1995 a frase. Atualmente, encontramos em “Hobbes nas Ruas“, de Luiz Felipe Pondé, e “Ordem ou Barbárie“, de Rachel Sheherazade, esboços de quadro de referência.

Por outro lado, também tivemos um abalo na estrutura das classes econômicas. A década que vai de 2001 a 2011 assistiu à ascensão de 40 milhões de brasileiros, que formam a chamada nova classe média. Esse deslocamento está na causa dos rolezinhos, conforme afirma Eliane Brum: “Os shoppings foram construídos para mantê-los do lado de fora e, de repente, eles ousaram superar a margem e entrar. E reivindicando algo transgressor para jovens negros e pobres, no imaginário nacional: divertir-se fora dos limites do gueto. E desejar objetos de consumo.”

Saque, quebra-quebra e linchamento

Outra distinção interessante discutida por Martins nos dois artigos é a que existe entre movimentos sociais – forma privilegiada pela sociologia como modelo para a organização e ação social – e o comportamento coletivo, que abrange modos de protesto distanciados da razão: os saques, os quebra-quebras, os linchamentos. Tendo em vista a história política nacional desde junho de 2013, ampliar a nossa visão a respeito dos limites e contatos entre essas duas formas pode ser útil.

Essas modalidades de comportamento coletivo, diz o pesquisador, são em suma “irracionais e emocionais”, com uma orientação “egoísta e anti-social, ainda que praticada em nome de valores sociais relativos à (…) preservação do interesse de todos, como, aliás, ocorre nos linchamentos”. Ele também afirma que: “uma certa tolerância romântica implícita em relação a formas de delinquência dos pobres contra o ricos ou do povo contra o Estado, que parecem sugerir o germe da insurgência revolucionária, marcou de algum modo muitas interpretações”.

Na esteira dessa discussão, esses atos “não-racionais” são também formas de construção social. Não há “evolução” necessária entre elas e os movimentos sociais – segundo Martins, “são a dimensão irredutível de uma conduta humana autodefensiva (…) nele, o contrato social não se recompõe e se rompe mais ainda do que na ruptura primeira que lhe deu origem”.

Sendo assim, pensamos que seria função do jornalista avaliar quais os discursos produzidos e qual projeto social se põe em jogo. Alguns resultados anteriores indicam o “poder da raiva” periférica, ou pedem que percebamos o quanto somos próximos da humanidade dos linchadores. Noutros âmbitos, podemos renovar a nossa ótica. Por exemplo: os black blocks talvez sejam mais bem compreendidos se considerarmos não só o histórico internacional da tática, mas as manifestações similares por aqui, anteriores à importação do nome.

Urbanização inconclusa

Existe uma explicação básica em Martins: “Estamos em face de processos sociais próprios de uma situação do que se poderia chamar de urbanização insuficiente e inconclusa. Quando se fala de exclusão, como está em moda nos dias de hoje, deve-se, no meu modo de ver, considerar que ela se materializa na privação de compreensão da lógica própria da vida urbana e civilizada. A violência dos linchamentos só pode ser compreendida nessa perspectiva, na medida em que se trata (…) de uma violência-resposta à violência urbana. Nesse sentido, os linchamentos encerram uma crítica prática às instituições e à lei (…)”.

Sempre segundo Martins, “(…) concepções conservadores têm nos linchamentos um desdobramento sombrio. Não só pelos crimes em si que os linchamentos efetivamente são. Mas, sobretudo, porque os linchamentos nos revelam que esta sociedade é incapaz de abranger em laços de tipo contratual, na reciprocidade de direitos e deveres, grandes parcelas de sua população: mais de 260 mil brasileiros participaram de linchamentos nas últimas duas décadas”. Em 1996.

O que precisamos, portanto, são de reportagens que consigam nos mostrar como e por que se dá esse esgarçamento do tecido social brasileiro. Um jornalismo que produzisse esse tipo de material seria quem sabe o antídoto para o que Janio de Freitas resume em: “O Brasil se embrutece. E o Brasil nem sequer se nota“.

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Duanne Ribeiro é jornalista