Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Pelo direito de fazer o meu trabalho

Existe alguma coisa muito errada em uma sociedade quando a imprensa é impedida de fazer o seu trabalho. A censura vindo do lado dos manifestantes ou da Polícia Militar é sinal de extremismo perigoso. No sábado (22/2), no protesto contra a Copa do Mundo que aconteceu no centro de São Paulo, a PM nos impediu de fazer nosso trabalho que é, simplesmente, reportar.

Quando começou o quebra-quebra na rua Coronel Xavier Toledo, eu vi jornalistas apanhando indiscriminadamente da polícia. É comum a gente ouvir dos leitores que “no meio da bagunça” vale tudo. Ouvi até de um fotógrafo que “quem está na chuva é para se molhar”. Só que não.

Primeiro porque pancadaria indiscriminada, teoricamente, é coisa de instituições desorganizadas ou nem sequer institucionalizadas. Vamos dar nome aos bois? Pancadaria indiscriminada é coisa de vândalo. Segundo que eu vi jornalista apanhando muito depois de ter se identificado como jornalista. Vi fotógrafo cuja única arma era uma câmera de lentes longas e único escudo era, além do capacete escrito “IMPRENSA”, um colete escrito “PRESS”. Esse fotógrafo apanhou de um PM enquanto fugia correndo do meio da Xavier até quase o Theatro Municipal.

Filmei um jornalista sendo ameaçado muito depois de se identificar como imprensa. E o recado final para ele, alto e claro: “então some daqui”. Como assim “some daqui”? Meu amigo, meu trabalho é estar aqui. Filmando, olhando, fotografando. Sei que a polícia tem seus cinegrafistas (vi um com uma câmera enorme em mãos e outro com uma GoPro no peito), sei que os manifestantes têm as suas câmeras e celulares, mas quem tem que se manter imparcial no meio disso tudo somos nós, jornalistas. Não me leve à mal, amo jornalismo colaborativo, vou fazer agregação de conteúdo divulgado por manifestantes e PMs, mas o meu trabalho é reportar, é a terceira via.

Errado e triste

E quando a Polícia Militar bate nos meus colegas, me empurra (levei uma escudada na nuca, o que não foi nada perto de colegas que apanharam e foram presos) e me ameaça (“a senhora quer ser algemada? Quer sentar no chão com eles? Então sai daqui, caralho”), eu não consigo fazer o meu trabalho. Aliás, na Xavier o trabalho dos PMs parece ter sido justamente dificultar o jornalismo. Não falo nem da fagocitose que rolou com um grupo de Black Bloc, essa estratégia de isolar e retirar um a um eu até entendo (embora tenha conseguido ver muita truculência e violência desnecessária contra as pessoas já rendidas). Falo da linha que foi feita de calçada a calçada e que foi conquistando terreno a cada bomba de gás lacrimogêneo (saudades, ar puro) e cada descida animalesca da PM batendo em seus escudos, gritando e descendo o cassetete em tudo e todos.

Quando eles fecharam a rua, eu já não via mais nada. Sobraram apenas os Advogados Ativistas, grupo que voluntariamente presta assistência jurídica aos detidos. Quer dizer, sobraram por pouco tempo. Aos poucos, a célula militar ia cuspindo os advogados, que vi serem lançados de maneira agressiva. “Eu estava acusando ilegalidades, isso é um absurdo, isso é um Estado de exceção”, gritou um. Outro que foi expelido do cerco pouco depois gritava que haviam roubado o seu celular. E eu desesperada sem conseguir ver nada, sem conseguir reportar nada, pulando em frente ao policiais menos altos ou me abaixando para tentar ver entre as pernas de outro. Eu e todos os colegas jornalistas – ou ao menos aqueles que não tinham sido presos ainda.

Mais de uma vez fui pega em área “de circulação proibida” ou exclusiva para PMs e presos e fui expulsa de lá – ameaçada de ser detida ou agressivamente escoltada para fora. Para não ser injusta, um policial foi gentil comigo quando me viu tentando proteger uma senhorinha que, como tantos, foi pega de surpresa ao sair do trabalho e sofria com os efeitos das bombas morais. Para continuar não sendo injusta, andando pelas ruas do centro acabei dando de cara com uma prisão, um moço sendo colocado no porta-malas de uma viatura e, não sei a razão, mas ele estava explicando que sua corrente não era de ouro de verdade. O policial rapidamente me tirou de lá (“área restrita”). Restrita por quê?

Existe algo muito errado com a democracia quando os jornalistas são proibidos de acompanhar ações policiais e manifestações. Quando jornalistas apanham. Quando ruas se tornam “áreas restritas” aleatoriamente e a reportagem passa a ser feita apenas pelo poder instituído e suas GoPros e cinegrafistas fardados. Existe algo muito errado e especialmente triste, também, quando um jornalista é atingido por rojões, pedras e violência de manifestantes. Nosso trabalho também é importante, especialmente em tempos como esses. Me deixem reportar. Me deixem fazer o meu trabalho. E me deixem fazê-lo sem (tanto) medo.

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Amanda Previdelli é editora de País do Brasil Post