Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os 10 mais ou menos

O objetivo deste tópico é louvar a pesquisa feita por Lira Neto nos dois volumes sobre Getúlio que publicou até agora (1882-1930 e 1930-1945). É daquelas pesquisas que, além de trazer informação inédita sobre o biografado, não descuram fatos importantes pertencentes a outras biografias. Antes de chegarmos até Lira Neto, porém, é preciso fazer um desvio.

A revista Aventuras na História resolveu elaborar uma lista dos “10 brasileiros fundamentais” na História do Brasil (abril, edição 129). Seriam os “nomes indispensáveis para entender o país de hoje”.

“Especialistas” ouvidos, na maior parte professores de História, cometeram o desatino de apresentar nomes de indivíduos que morreram há menos de 100 anos. Historiadores, por definição, sabem como isso é arriscado e não faz mais do que mostrar suas preferências intelectuais, ideológicas ou políticas. Ou seus preconceitos. Ou as modas acadêmicas.

A exceção poderia ser a indicação de Getúlio Vargas, cuja proeminência no século 20 é indisputada (mesmo assim, não aparece em duas das dez listas). Entre os leitores, os três mais votados foram Juscelino Kubitschek, Vargas e Machado de Assis, que não aparece nas listas de sete dos “especialistas”.

Anchieta, dom João e Matarazzo

Como não podia deixar de ser, trata-se de um besteirol de bom tamanho. Entre os listados por historiadores e escritores estão José de Anchieta, dom João VI e Francisco Matarazzo, que só muita ginástica mental pode considerar “brasileiros”. Outros são Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Joaquim Barbosa: a noção de um mínimo de recuo, de perspectiva histórica, foi para o espaço.

Tendo concordado em participar do furdunço revisteiro, os dez intelectuais estiveram muito longe de algum consenso: apontaram 49 nomes. Quem teve mais votos, oito, foi Getúlio. Machado de Assis teve três votos: tantos quanto Monteiro Lobato.

Lobato, escolhido para ilustrar o sumário da edição, não aparece entre os preferidos do público. Nas duas páginas que lhe cabem, ele é apresentado no primeiro parágrafo como…

“Nacionalista fã dos Estados Unidos. Modernista que odiou a Semana de Arte Moderna. Empresário sagaz que fundou a indústria editorial no país e morreu com fama de comunista. Adepto inicial [sic] de teorias racistas, que depois embarcou numa cruzada para salvar o homem do campo. Autor de livros infantis que amava viver em guerra com os adultos. Esse foi Monteiro Lobato – um brasileiro que podia estar errado, mas não podia ser ignorado.”

Pátria paulista

Aqui entra Lira Neto. Em seu livro Getúlio – Do Governo Provisório à ditadura do Estado Novo (1930-1945), ele constata, ao abordar o movimento paulista de 1932:

“Monteiro Lobato deixou um documento comprobatório de que, no afã pelo convencimento político, o separatismo era uma hipótese aventada não só por carbonários de segunda ordem, mas também por propagandistas de grande expressão.

‘Após a vitória de São Paulo, na campanha ora empenhada, se faz mister que seus dirigentes não se deixem embalar pelas ideias sentimentais de brasilidade, irmandade e outras sonoridades. O Norte inteiro é nosso inimigo instintivo. O Rio Grande não é amigo. Minas cuida de si’, escreveu Lobato. ‘Temos de nos guardar de todos esses irmãos. Se Abel houvesse pensado assim não teria caído vítima da queixada de burro com que o matou Caim’, comparou o escritor, que um ano antes publicara o clássico da literatura infantil Reinações de Narizinho.

Lobato explicitava:

‘A atitude única que o instinto de conservação impõe a São Paulo, depois da vitória, deverá expressar-se nesta fórmula: Hegemonia ou Separação. […] Convençamo-nos de que só há dois caminhos na vida: ser martelo ou bigorna, boi de corte ou tigre. Velha bigorna, velho boi de corte, velha vaca de leite, transforme-se São Paulo em tigre. Faça-se todo dentes e garras afiadíssimas, antes que a linda ideia romântica de brasilidade o reduza a churrasco’.”

Leitura atenta

Não se trata de uma descoberta de Lira Neto. Ele simplesmente leu com atenção as fontes que usou. E teve o mérito de fazer uma citação relevante. O texto de Monteiro Lobato está em “A defesa da vitória de São Paulo”, reproduzido por Hélio Silva no livro A guerra paulista, publicado pela primeira vez há 47 anos.

Tampouco se trata de negar a Lobato preeminência entre os grandes brasileiros. Mas a matéria da revista poderia ter feito a ressalva de que, em sua trajetória confusa, o grande escritor teve momentos de antibrasilidade.