Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Análise

Muita gente pensa que linguística é uma disciplina teórica, que trata do signo, das funções da linguagem, que é gerativa ou funcionalista e que se ensina em uma ou duas matérias do currículo de letras. Mas, quando se trata de ensinar gramática, deve-se voltar aos compêndios que listam regências, concordâncias, análise sintática e morfológica. Ou seja, que a linguística não é prática, não analisa. Só teoriza.

Ora, é exatamente o contrário: as teorias linguísticas que valem a pena são as que explicam os fatos melhor do que as teorias anteriores, venham de onde vierem. No caso, as que explicam melhor do que as gramáticas, com as quais concorrem em termos metodológicos, teóricos e mesmo epistemológicos. Vou dar um exemplo.

Considerem-se as análises abaixo, do conhecido professor Luiz Antonio Sacconi (em Não erre mais. São Paulo, Editora Atual, 1998). Cito:
 

Deixe eu dormir sossegado.
Não se usa pronome do caso reto com o verbo deixar, nessa circunstância, quando a ele se segue um verbo no infinitivo. Portanto:
(1) Deixe-me dormir sossegado.
(2) Deixem-me ver o que vocês têm nas mãos (e não: Deixem eu ver…) 
(3) Deixaram-me entrar (e não: Deixaram eu entrar….)
Observe-se que construímos:
(4) Ninguém me deixa dormir sossegado (e não: Ninguém eu deixa…)
(5) Não me deixaram entrar (e não: Não eu deixaram entrar…)

Sua explicação para a ocorrência de ‘me’ em (1)-(3) é “quando a ele se segue um verbo no infinitivo”. Olhando para os exemplos, parece que é o que ocorre, que essa é a regra ou a descrição dos fatos.

Mas o fator relevante é outro: trata-se de casos nos quais o pronome (eu/me) pode ser interpretado, semanticamente, como objeto de ‘deixar’ e como sujeito de ‘dormir’, ‘ver’ (na verdade, mesmo gramáticas como a de Evanildo Bechara afirmam isso; mas não oferecem uma explicação explícita para o fato).

Ou seja, a ‘circunstância’ relevante não é a presença do infinitivo. Ele é uma consequência, não uma condição. Há, portanto, um erro de interpretação do dado, causado pela ausência de interpretação semântica da sequência, que foi descrita mecanicamente, visualmente.

Além desse erro, há um mais grave na explicação. Trata-se do teste proposto pelo autor para justificar sua tese. Com os exemplos (4) e (5), pretende mostrar, considerando outros fatos, que a regra que propôs é adequada.

Mas a comparação que deveria fazer não é entre

Ninguém me deixa dormir sossegado 
Ninguém eu deixa dormir sossegado,

mas entre

Ninguém me deixa dormir sossegado 
Ninguém deixa eu dormir sossegado

Até a simples observação mostra que ele se equivocou. Pode-se descobrir tal equívoco considerando que:

(1) está ensinando que não se usa ‘eu’ DEPOIS de ‘deixar’ e ANTES de infinitivo. Ora, se é assim, por que proíbe ‘eu’ ANTES de ‘deixa’, afirmando que não se diz ‘Ninguém eudeixa sair’? O caso que está tentando explicar tem a ver com o pronome antes do infinitivo, não antes do verbo da oração principal. Agora há também um equívoco na observação dos fatos aparentes.

(2) pelas regras que adota (as da norma gramatical sobre colocação dos pronomes oblíquos), em ‘Ninguém me deixa’ e em ‘Não me deixaram’ (exemplos 4 e 5), me está antes de ‘deixar’ porque é atraído por ‘não’ e por ‘ninguém’, respectivamente. Mas a posição ‘original’ é DEPOIS de ‘deixar’, como fica claro nas orações não negativas (1), (2) e (3). Os exemplos (4) e (5) deveriam ser, seguindo a doutrina que Sacconi expõe:

(4’) Ninguém me deixa dormir sossegado (e não: Ninguém deixa eu dormir…)
(5’) Não me deixaram entrar (e não: Não deixaram eu entrar…)

que são simétricos de (2) e (3). Ou seja, o autor comete erros de argumentação e de análise, mesmo segundo sua teoria.

Teoria e análise

É um exemplo, entre centenas de casos possíveis, que mostra a diferença entre uma teoria explícita ‘aplicada’ a dados reais da língua e análise de dados da língua com base em intuições ou observações que se revelam equivocadas ou parciais.

Como deveria ser a análise? Resumidamente, a seguinte: deve-se considerar o sentido da sequência; faz-se isso construindo todas as paráfrases possíveis, que são

(6) deixe-me dormir
(7) deixe eu dormir
(8) deixe que eu durma

Assim, fica claro que o período é composto e que ‘eu dormir’ é a oração subordinada, o que é mais evidente no exemplo (8): ‘… que eu durma’. Explicam-se as três estruturas:

** se a opção for pelo verbo em tempo finito, tem-se (8), que exige a inserção da conjunção integrante (que);

** se a opção for pelo verbo no infinitivo, há duas construções possíveis: (7) preserva a possibilidade de ‘eu’ ser sujeito sintático de ‘dormir’ (porque ‘eu’ tem função típica de sujeito); (6) implica que ‘eu’ (agora ‘me’) é objeto de ‘deixar, porque ‘me’ não é tipicamente uma forma de sujeito, mas uma forma de objeto.

Resta explicar melhor a construção (7): é geralmente condenada pelas gramáticas normativas, mas é cada vez mais frequente, ocorrendo mesmo em textos escritos bastante monitorados. Sua interpretação semântica implica que ‘eu’ é sujeito de ‘dormir’, mas sua sintaxe pode receber duas análises: ‘eu’ pode ser sujeito de ‘dormir’ ou objeto de ‘deixar (em português popular, essa análise é óbvia).

Ainda é preciso explicar como ‘eu’ passa da função de sujeito da oração subordinada à posição de objeto do verbo da oração principal. Tal explicação está na regra de ‘alçamento’, que pode ser representada assim: a estrutura [deixa [eu dormir]] muda para [deixa eu [dormir]], caso em que a subordinada fica reduzida ao verbo e seu sujeito ‘sobe’ para a posição de objeto de ‘deixar’.

Resta mostrar que essa regra não é ad hoc (isto é, não se aplica a um ou a poucos dados), o que se faz de duas maneiras: 1) com outros fatos do português (eu julgo que ele é adequado -> Eu o julgo adequado) e 2) de outras línguas (como, por exemplo, o conhecido caso acusativo com infinito do latim).

Assim, tem-se uma explicação clara e coerente do fenômeno. Pode não ser a única, mas só pode decorrer de uma teoria explícita e de métodos rigorosos de análise dos dados. 

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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas