Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O discurso performático

Observadores da cena pu?blica, mais especificamente no chamado campo midia?tico, ou seja, no contexto das relac?o?es econo?micas, poli?ticas e sociais que e? compartilhado no territo?rio da mi?dia, tendem a acreditar que tudo se passa dentro dos paradigmas, genericamente aceitos, que conformariam o processo da modernidade, ainda visto como o movimento progressista em busca de uma verdade. Ha? certa crenc?a geral numa teleologia como pano de fundo dos acontecimentos, mesmo entre aqueles que adotam a tese de que vivemos uma po?s-modernidade.

Essa e? uma caracteri?stica evidente nos trabalhos de autores, analistas e especuladores com acesso privilegiado aos meios de grande repercussa?o: para serem reconhecidos no valor cultural que imaginam ter, e? preciso que sua produc?a?o intelectual tenha algum sentido, que sejam admitidos como algue?m que constro?i uma obra consistente. A ilusa?o de que se esta? a produzir, no tempo presente, a verdade que se projetara? no futuro precisa se configurar como expressa?o de uma realidade, sem a qual nada do que produzem faria sentido.

Essa e? uma das matrizes de certa sensac?a?o que provocam algumas ideias correntes nesse ambiente midiatizado, e que se caracterizam pela profusa?o de citac?o?es – algumas conflitantes entre si. E? como se o autor de um comenta?rio semanal no jornal ou na revista tivesse a convicc?a?o quase religiosa de que suas palavras, ao serem transplantadas de seu teclado para as telas dos aparelhos digitais ou para as folhas de papel, tivessem o conda?o de criar o mundo – ou de condicionar seu futuro.

Platitudes sobrelevadas

Para na?o fugir a? pra?tica das citac?o?es, conve?m observar que tal condic?a?o mental lembra a teoria dos atos de discurso elaborada por John Austin (1911-1960) sobre o poder que te?m certas palavras de interferir nas condic?o?es objetivas da vida. Como se dizia em certo grupo de estudos na Universidade da Califo?rnia, em Berkeley, nos idos de 1999, e? mais ou menos como aquele “sim”, que, proferido diante do altar, confere a quem o pronuncia uma sogra e um par de cunhados.

Em torno dessa percepc?a?o Austin desenvolveu a Teoria dos Atos de Fala, ana?lise dos jogos de linguagem nos quais se observa a ocorre?ncia de tre?s naturezas: o ato locuciona?rio, o ato ilocuciona?rio e o ato percuciona?rio. Fiquemos, no entanto, com o que ele observa sobre as diferenc?as entre as sentenc?as constatativas – compostas pelas declarac?o?es que procuram definir um fato – e as sentenc?as performativas – aquelas que ao serem emitidas produzem uma ac?a?o, um resultado.

O que denuncia mais claramente o desejo de fazer das palavras no presente um paradigma do que vira? a ser o futuro, em determinadas manifestac?o?es do pensamento predominante no sistema midia?tico, e? certa manipulac?a?o de sentenc?as, conforme se deseja intervir num relato ou produzir o discurso com o qual se pretende estabelecer a versa?o desejada de determinado evento. Com isso creem os autores de tais comenta?rios que esta?o assegurando uma interpretac?a?o especi?fica do objeto de ana?lise no registro da Histo?ria.

As sentenc?as constatativas buscam refere?ncias em indicadores, citac?o?es, exemplos convenientes e dados aleato?rios adequadamente acondicionados. Mas a grac?a maior da apreciac?a?o desse desempenho esta? na ana?lise das sentenc?as performativas, pelas quais, segundo Austin, procura o autor criar uma realidade. No ambiente midiatizado do nosso tempo, no qual se tornam disponi?veis diversos aparatos que suportam a palavra com imagens e sons, a performance se torna ainda mais interessante, pela ampliac?a?o de seu potencial.

Por outro lado, identificado o aspecto artificial que costuma revestir o discurso do convencimento, toda essa performance corre o risco de resvalar do padra?o intelectual pretendido para o ramo da bazo?fia. Para identificar tais manifestac?o?es dessa curiosa pantomima, basta atentar para certos detalhes do discurso, ou para a postura corporal, a imagem construi?da cuidadosamente pelo protagonista degage?, senhor de si e de suas reflexo?es.

Um par de o?culos coloridos, uma sucessa?o de beicinhos e esgares, e esta? composto o personagem que ira? fundamentar o conjunto das ideias que se pretende sejam levadas a se?rio. Assim se produzem certas reputac?o?es no campo intelectual midiatizado. O curioso e? que, com tais recursos, pode-se elevar platitudes ao pi?ncaro das grandes lucubrac?o?es, astro?logos se transfiguram em filo?sofos e velhas mentes reaciona?rias se anunciam como luminares da modernidade. Perda?o: da po?s-modernidade.