Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Piketty, charme e fantasia

É impressionante o sucesso editorial alcançado por Capital in the Twenty-First Century, do economista francês Thomas Piketty, que tem como foco as desigualdades sociais nos últimos 100 anos.

Ainda não editado no Brasil, o livro rapidamente converteu-se em best-seller nos Estados Unidos, a despeito de ser um calhamaço de quase setecentas páginas, na edição inglesa, envolvendo sofisticadas construções econômicas, inúmeras tabelas e elegantes passagens de Jane Austin e Honoré de Balzac.

O livro tem sido objeto de uma miríade de resenhas. Recebeu, dentre muitos, elogios de Paul Krugman e Robert Solow, ambos agraciados com o Prêmio Nobel de Economia. As críticas, ao menos por ora, são discretas.

Piketty e sua equipe pesquisaram, durante 15 anos, inúmeras informações, dentre as quais declarações de imposto de renda e de espólio, abrangendo 30 países.

Em síntese, afirma que as desigualdades aumentam sempre que a taxa de retorno do capital for superior à de crescimento da economia.

A fórmula parece engenhosa. Ainda que não tenha argumentos para enfrentá-la, desconfio sempre de explicações tão prosaicas para questões tão complexas, como as desigualdades sociais. Henry Mencken (1880-1956), brilhante jornalista americano dizia que “para todo problema complexo existe uma solução simples, elegante e completamente errada”.

Os dados utilizados na pesquisa foram duramente contestados por Chris Giles, editor do Financial Times. A resposta de Piketty foi pífia. Alega que os dados podem ser melhorados ou corrigidos, sem que implique mudança de sua tese. Lembrei-me da frase atribuída ao humorista Groucho Marx: “Esses são meus princípios. Caso não lhes agradem, eu tenho outros.”

De minha parte, vejo com ressalvas informações coligidas de declarações de imposto de renda. Sua consistência pode ficar comprometida pelos históricos fenômenos da evasão e elisão fiscais.

A questão mais polêmica, contudo, é a proposta de Piketty para reduzir as desigualdades sociais: universalizar a tributação progressiva do imposto de renda, com alíquotas de até 80%, e das heranças.

Universalização de tributos é algo impensável. No máximo, pode haver convergência de alíquotas em virtude de competição fiscal. Que tal reunir, para uniformizar tributação, americanos e norte-coreanos, russos e ucranianos, gregos e troianos?

Os países que não aderissem à regra tornar-se-iam, naturalmente, contentes paraísos fiscais. No ano passado, o ator francês Gérard Depardieu assumiu a nacionalidade russa para escapar da escorchante alíquota de 75% estabelecida pelo governo de François Hollande.

Imperativo republicano

É simplismo imaginar que progressividade se efetiva por meio de alíquotas nominais, sem esquecer que a alíquota de 80% é francamente confiscatória, o que no Brasil é inadmissível por vedação constitucional.

O exame da progressividade deve começar pela avaliação das deduções e dos tratamentos tributários diferenciados em razão da natureza do rendimento (por exemplo, trabalho assalariado e aplicações financeiras).

Em seguida, olhar para o gasto público, por meio do qual a progressividade se alcança, talvez, mais eficazmente. Programas de transferência de renda, educação e saúde, focalizados nos mais pobres, são poderosos instrumentos para reduzir desigualdades. É óbvio que a corrupção nos gastos fulmina qualquer pretensão de progressividade.

A progressividade deve ser vista pela análise conjunta das alíquotas nominais por tipo de rendimento, deduções e gasto.

Tributação das heranças é inerente à história dos impostos. O equívoco é torná-la confiscatória. Nada em demasia, como ensinavam os gregos. Ninguém quer ter o governo como herdeiro. Alíquotas pesadas, nas heranças, produziria um estímulo extraordinário ao consumo ou, mais provavelmente, faria a festa dos planejadores fiscais.

A luta pela redução das desigualdades sociais é um imperativo republicano. Não creio, todavia, em fórmulas salvacionistas, e muito menos nas que foram aventadas por Piketty. O debate provocado é, entretanto, oportuno.

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Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal