Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Cobertura personificada e legalista da corrupção política

Há poucas semanas, o Fantástico, da TV Globo, anunciava uma reportagem, cujo título interpelou-me à primeira vista: “Manual da Corrupção Eleitoral”. Assisti ao programa com uma expectativa contida. Um dos elementos mais curiosos foi o fato de toda a reportagem girar em torno de uma personagem fictícia, Cândido Peçanha, apresentada como protótipo do político corrupto brasileiro. Um segundo episódio ocorrera, igualmente semanas atrás, por ocasião da ida de um grupo de parlamentares à penitenciária da Papuda com o objetivo de fiscalizar as condições carcerárias de José Dirceu. Ao passar por uma banca de jornal, em Brasília, a manchete do Correio Braziliense chamou a minha atenção: “Cela de Dirceu tem chuveiro quente, TV e micro-ondas”. Enquanto a lia, uma senhora de meia-idade aproximou-se de mim e, com ar de profunda revolta, destilou um “que absurdo!”.

Episódios desse tipo são boas fontes de reflexão para algumas inferências que venho fazendo sobre a forma como o jornalismo constrói o fenômeno da corrupção política no Brasil. Uma dessas inferências está relacionada com a construção de notícias e reportagens extremamente personificadas. Ambos os casos, apesar de conjunturalmente distintos, têm um denominador comum: estão centrados em pessoas – Cândido Peçanha e José Dirceu. Apesar de o primeiro ser uma personagem fictícia, de caráter coletivo, o seu efeito de ancoragem e materialização no real, via discurso jornalístico, é enorme. Sem falar no seu efeito de diabolização da política e, particularmente, do político. O segundo ator, conhecido até pelo mundo mineral, teve sua imagem sobejamente estampada nos diversos meios de comunicação social, principalmente durante os meses do julgamento do mensalão. Envolvido em abordagens como as da revista Veja, Dirceu fora apresentado como uma espécie de anti-herói, o vilão da sociedade brasileira. Ao contrário, o ministro Joaquim Barbosa foi vangloriado, transfigurado em herói do povo, “o menino pobre que mudou o Brasil”.

Jornalismo e discussão política

A tendência de centralização da cobertura jornalística da corrupção em pessoas, tendo por detrás motivações claramente ideológicas, encerra um conjunto variado de consequências. A mais preocupante é a ausência de um debate sério, na esfera pública, sobre os reais motivos da proliferação de um fenômeno, apontado pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos como uma das maiores causas de crise das democracias ocidentais.

Visto por Habermas como um dos principais mobilizadores do espaço público burguês, o jornalismo foi historicamente associado a uma arena de discussão crítica de temas caros à opinião pública. No século 19, as questões sociais mais importantes da sociedade francesa estavam nas páginas da imprensa, dando corpo a fervorosos debates de ideias que envolviam intelectuais, políticos e outras figuras importantes da época. Um exemplo da vocação crítica da imprensa, na discussão de temas sociais, envolveu o romancista Émile Zola que, envolvido no chamado affaire Dreyfus, publicou o célebre J’accuse! (Eu acuso!), manifesto em defesa de um soldado francês de origem judaica, acusado de traição ao Estado, numa tramoia arquitetada por oficiais de cúpula das Forças Armadas. Foi, aliás, daí que surgiu a expressão “intelectual”.

Sem dúvida, o jornalismo de hoje exerce um papel fundamental na denúncia de casos, de que é exemplo o famoso “caso mensalão”, ou mesmo as denúncias contra o ex-presidente Fernando Collor de Mello, conducentes a uma crise política de proporções gigantescas, que culminou, como se sabe, com o seu impeachment. No entanto, o desempenho do jornalismo na busca por respostas ao fenômeno que denuncia é extremamente reduzido, para não dizer redutor. Após a denúncia, o que passa a importar é a culpabilidade de indivíduos. Curioso é que, mesmo antes da manifestação da justiça, muitos acusados são antecipadamente condenados, numa espécie de tribunal simbólico da esfera pública.

Naturalmente, o meu objetivo não é a defesa de qualquer envolvido em qualquer caso de corrupção. Corrupção é uma prática ilícita e deve ser punida. Em contrapartida, o aspecto para o qual gostaria de chamar a atenção está relacionado com o lugar assumido pelo jornalismo frente ao problema. Um lugar cada vez mais dissociado da arena de discussão política, à qual ele esteve ligado durante séculos. Não estou a falar, obviamente, em política partidária, mas na visão aristotélica de Política como o espaço de discussão aprofundada de questões atinentes à realidade da polis.

Oportunidade abandonada

O jornalismo brasileiro tende a criar a ideia de que vivemos imersos numa “cultura de impunidade”, alertando-nos para o fato de que a corrupção está culturalmente arraigada ao código genético tupiniquim. Por outro lado, não são raras as construções semânticas que apontam a corrupção política como um problema endêmico, pulverizado em nossa sociedade e em todo o sistema político.

Ao adotar essas construções midiáticas de sentido, chegamos à conclusão de que a corrupção impregna-se de tal forma nas instituições políticas nacionais, estaduais e municipais, que a própria estrutura estatal rui, num imparável apodrecimento. A corrupção, nesse contexto, possa ser um problema de Estado e a integrar o nosso imaginário. Dados da Transparência Internacional de 2013 colocaram o Brasil na 69ª posição, num ranking que procura mensurar o nível de percepção pública da corrupção, em países dos cinco continentes. Segundo a organização, uma das responsáveis pela alta percepção do fenômeno entre os brasileiros é a mídia.

Já que o jornalismo aponta para a existência de uma corrupção sistêmica, seria de esperar que o próximo passo a ser dado fosse a discussão desse sistema, cuja precariedade, como se depreende da narrativa jornalística, estaria na base do nascimento e do espraiamento do fenômeno. Curiosamente, ao fazer a cobertura de casos específicos, o jornalismo abandona completamente, ou relega a um plano muito secundário, a oportunidade do debate, voltando o seu horizonte de interesses para uma luta frenética pela condenação de pessoas. Nesse movimento de incorporação de uma pseudoaura jurídica, é interessante observar que o jornalismo tanto elogia quanto critica a justiça oficial, adotando tons que variam, em maior ou menor grau, de acordo a aproximação, ou o distanciamento dos vereditos judiciais de suas expectativas condenatórias.

Efeito perverso

Essa reflexão conduz-me a questões presentes na filosofia de Platão. Em sua República, ao narrar o diálogo entre Sócrates e o sofista Trasímaco sobre o que seria o bom e o justo, o filósofo grego permite aflorar o tema da legitimidade. Segundo o professor da Universidade de Brasília Alexandre Araújo Costa, naquele contexto, a legitimidade, para Platão, seria o conceito de que dispúnhamos para questionar a validade de uma ordem, mesmo quando ela adviesse de uma pessoa, ou instituição com potencial de gerar obediência. Na contramão desse conceito platônico de legitimidade, podemos trazer a legalidade, ou discurso legalista, que não permite discussão alguma. Ao magistrado não cabe colocar a lei em causa, devendo aplicá-la tout court. O discurso legalista, portanto, prevê a confirmação das estruturas.

Essa ligação ao pensamento platônico permite, ainda que com cuidado, fazer algumas elucidações quanto à postura do jornalismo frente ao tema da corrupção política, tal como descrevemos antes. Queremos dizer que, no momento em que o jornalismo abre mão da discussão de uma estrutura, que o próprio aponta como degradada pela corrupção, e passa a preocupar-se, tão-somente, com a culpabilidade de pessoas, ele assume, lui-même, um discurso legalista.

Em outras palavras, o jornalismo reduz a legitimidade platônica à legalidade, sendo que a característica principal dessa última é justamente abafar o debate. Recorrendo à noção de despolitização, que o filósofo alemão Carl Schmitt desenvolve, em O conceito do político, podemos estabelecer uma analogia com o seu pensamento para dizer que o jornalismo despolitiza a sua prática porque não discute as temáticas a fundo. Um exemplo, entre vários: no ano passado, durante o julgamento do cabimento de embargos infringentes, na Ação Penal 470, a grande mídia, em nenhum momento, procurou discutir a real validade daquele instituto recursal. Antes e depois das sessões de julgamento, o clima de opinião midiático era o mesmo: não cabem os embargos. Por que? A história dirá, mas posso adiantar o meu contributo: porque importava apenas a condenação sumária.

Ao não discutir as questões, o jornalismo desvincula-se de sua faceta histórica mais nobre: a procura por respostas adequadas às demandas sociais, ou, melhor ainda, ao interesse público. De qualquer modo, essa despolitização assume nuances muito particulares. Não se trata de esquecimento, nem tampouco de ingenuidade: a não discussão assenta em objetivos ideológicos.

O discurso legalista ideologizado do jornalismo sobre a corrupção política tem, portanto, um efeito perverso, mas, sobretudo, paradoxal. Isso porque, como antes dissemos, se a legalidade não autoriza a contestação das estruturas (das normas, do sistema como um todo), ao adotá-la em seu discurso, o jornalismo confirma, tacitamente, a mesma estrutura, visceralmente comprometida pela existência da corrupção, que antes havia denunciado.

Por fim, vale ressaltar que, guardados os perigos da generalização, essa é uma tendência observável em todos os meios de comunicação, de um lado a outro do espectro político-ideológico. É nesse enquadramento que o discurso jornalístico sobre a corrupção assume-se como personificado e, consequentemente, legalista. Desse modo, pouco ou nada nos ajuda a compreender o fenômeno da corrupção política.

Por agora, vem-me na memória, como um relâmpago, aquilo que o repórter polonês Ryszard Kapuscinski uma vez disse, referindo à sua própria profissão: “Os cínicos não servem para este ofício”.

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Bruno Bernardo de Araújo é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília, mestre em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, Portugal e pesquisador colaborador do Grupo de Investigação Comunicação, Jornalismo e Espaço Público, do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra