Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Monopólio da memória

Não há lei que proíba biografias no Brasil. Nem sequer há lei que possibilite a proibição de biografias. Muito menos há lei que condicione a publicação de biografia à autorização do biografado ou de seus herdeiros. Tampouco há lei que vede a exposição de obras de renomada artista.

É incompreensível que neste país ainda haja investidas contra biografias e divulgação de obras artísticas. Mais surpreendente ainda é que pretensões dessa natureza sejam de algum modo acatadas por editoras, autores ou museus, e, algumas vezes, até deferidas por magistrados.

Além dos já conhecidos processos contra as biografias de Garrincha e Roberto Carlos, só para citar duas dentre um manancial de desatinos semelhantes, sabe-se que recentemente Luciana Gimenez se indispôs contra trecho da biografia de Mick Jagger, o que impedirá que um capítulo referente ao relacionamento dos dois seja publicado por aqui. Enquanto isso, os herdeiros de Lygia Clark impedem a exibição pública de obras da artista. E até vedam, segundo se noticiou, o uso do nome dela em exposições.

Causa indignação que obras de artistas já mortos não possam ser expostas ou reproduzidas por implicância (ou ganância) de familiares, ou que a imagem e a biografia de pessoas famosas, mortas ou não, sejam impedidas de chegar ao público. Constituem verdadeiros atos de afronta ao acesso à cultura e à informação – como se a memória pudesse ser objeto de monopólio.

Artistas, celebridades e seus herdeiros, quando pretendem controlar o acesso à história ou às suas obras, agem como se estivessem na singular posição de únicos fornecedores de determinado produto, sem perceber que essas histórias ou obras já pertencem à sociedade e integram a identidade cultural e, portanto, delas os cidadãos não podem ser privados.

Para entender o que se passa é necessário algum aprofundamento no emaranhado da legislação, senão o discurso pode virar tolice. São duas as situações de criação de obstáculos de que se tem tido notícia, que correspondem a conceitos jurídicos distintos. Uma é a que se refere à publicação de biografias, cujo fundamento se dá no direito de imagem, de privacidade e de proteção do nome, contemplados pelo Código Civil. Outra situação é a que diz respeito à exposição e reprodução de obras artísticas, reguladas pela Lei de Direito Autoral.

Biografias

Os dispositivos do Código Civil que têm sido citados no debate e que fundamentariam as proibições não se aplicam às biografias e à imprensa. Assim é porque a Constituição expressamente afasta e veda restrições ao exercício da liberdade de expressão e de informação. Essas afirmações não resultam de interpretações pessoais ou de linha doutrinária, porque são expressas na Carta.

Um dos seus dispositivos determina que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Outro dispõe que é livre a manifestação do pensamento; outro, ainda, que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição; outro mais dá à atividade do ensino as garantias da liberdade de pesquisa e de divulgação. Os textos são claros e não permitem dúvidas.

Sendo assim, cabe verificar qual a causa da controvérsia a respeito das biografias.

O debate nasce da introdução, no Código Civil de 2002, de quatro artigos (art. 12, 17, 20 e 21) que geraram uma enorme confusão, alimentada por decisões judiciais equivocadas e pela instrumentalização em prol de objetivos meramente financeiros.

Os dispositivos do Código Civil permitem, em linhas gerais, que um juiz impeça a violação à intimidade, ou que faça cessar a ameaça a um direito da personalidade (as lesões à honra, ao nome e à imagem). Com isso, abriu-se uma brecha para a interpretação de que biografias e matérias jornalísticas possam ser proibidas ou que devam ser autorizadas.

Essa interpretação não resiste a um confronto com a Constituição Federal – a lei maior, cuja função é elencar os princípios que regem a organização da Sociedade e do Estado e que dirige a interpretação da legislação ordinária. Assim sendo, esses dispositivos do Código Civil não se aplicam nem às biografias, nem às matérias jornalísticas. Eles são inconstitucionais se aplicados para restringir a liberdade de expressão e de informação. Podem até ter aplicações em outras searas, mas não nessa.

E não é que não haja solução quando há abuso. A própria Constituição traz a resposta quando dispõe que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Ou seja: a liberdade de expressão é plena, não pode sofrer restrição, mas, caso haja violação da privacidade ou da honra, ela é resolvida em perdas e danos. Quem escreve uma biografia fica, então, sujeito a responder por indenização caso ultrapasse os limites estabelecidos no sistema jurídico do país. Não se pode proibir a circulação da obra, mas o autor pode ser responsabilizado pelos danos causados.

E nem se diga que a publicação de uma biografia teria um “uso comercial” que pudesse justificar a proibição. O ato de escrever uma obra literária, acadêmica ou jornalística, que gerará direitos autorais e outras formas de remuneração, é uma atividade civil, e não comercial. A existência de remuneração e a finalidade econômica estão presentes em todas as atividades humanas, e é insuficiente e imprópria para definir o “uso comercial”. Ou Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Roberto Carlos seriam comerciantes?

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o assunto em mais de uma oportunidade. A mais veemente ocorreu quando revogou a Lei de Imprensa, em decisão unânime caracterizada por manifestações dos ministros sobre as liberdades de manifestação do pensamento e informação, todas elas, sem exceção, no sentido da inexistência de restrição prévia.

Ruy Castro, ele próprio vítima de uma absurda decisão judicial que impediu a circulação de um livro seu, sempre lembra, no espaço de sua coluna na Folha, que há ação no Supremo Tribunal Federal sobre o assunto esperando uma decisão. As pessoas poderiam então se perguntar: ora, se é assim tão evidente, pela análise da Constituição, que não se pode proibir a publicação de uma biografia, qual a razão de haver um processo no STF?

Como dito acima, os dispositivos introduzidos no Código Civil de 2002 abriram oportunidade a interpretações equivocadas. Justamente para sanar esse mal-entendido geral, a Associação Nacional de Editores de Livros (Anel) propôs uma ação direta de inconstitucionalidade, questionando os artigos 20 e 21 do Código Civil. Infelizmente a Anel deixou de questionar os artigos 12 e 17, e certamente assim agiu por alguma questão relevante, mas é uma pena que não tenha aproveitado a oportunidade para aumentar o âmbito do questionamento que, de resto, é completamente legítimo e cabível.

Nessa ação, de modo geral, o que se propõe é que a esses dispositivos do Código Civil seja dada uma interpretação conforme a Constituição Federal, com a declaração, pelo Supremo Tribunal, de que esses dispositivos não se aplicam às biografias, livros e obras audiovisuais. Uma decisão neste sentido vincularia a interpretação dos dispositivos a esse entendimento do STF, impedindo que juízes de tribunais inferiores profiram decisões diversas – por exemplo, proibindo uma biografia.

Há uma outra observação na questão das biografias. Geralmente, os biografados são pessoas públicas, que participaram da vida e da história do país e da sociedade, de modos diversos. Não são anônimas, mas pessoas que abraçaram, em suas vidas, atividades em que os pontos de interação com a coletividade são amplos e essenciais para a própria existência dessas atividades. Um reconhecimento que já se tornou banal é o de que, para essas pessoas, que vão desde os políticos até os artistas, passando por todos aqueles que vivem da sua interação com a coletividade, a esfera de privacidade é mais restrita que a das demais pessoas. Mesmo os escritores e artistas que pretenderam se esconder do mundo lançaram suas obras para que fossem vendidas e comunicadas ao público. Nenhuma dessas pessoas tem o mesmo direito à privacidade que as demais. Seus feitos e a própria história de suas vidas, frequentemente essencial para a compreensão do sentido e da importância social da obra, já pertencem à sociedade.

Exposição Para impedir a exposição ou a reprodução de obras, familiares de artistas evocam a Lei de Direito Autoral. De fato há dispositivos na atual lei que restringem o direito de reprodução de obras (veja-se bem, a reprodução, não a exposição). Mas daí a considerar, por exemplo, que uma poesia de Drummond não possa ser reproduzida em um livro escolar, ou que a fotografia de um quadro não possa ser inserida no catálogo de um museu público que abriga aquele mesmo quadro, é atribuir aos dispositivos do direito autoral uma interpretação ultrarrestritiva.

É óbvio que não se está referindo à reprodução do quadro em agendas, xícaras ou sacolas que são vendidas na lojinha do museu, ou à reprodução de poemas em adesivos decorativos, só para citar exemplos bem típicos. Qual a diferença entre uma e outra reprodução? É evidente que a poesia inserida em um livro escolar e a reprodução do quadro no catálogo do museu cumprem finalidades públicas, didáticas e essencialmente culturais e que, por esse exato motivo, merecem ser preservadas de disputas particulares.

Com relação à exposição de obras artísticas, ela é expressamente permitida pela lei. Aquele que adquiriu uma obra tem o direito de expô-la ao público, não havendo fundamento jurídico algum para que herdeiros, não proprietários, vedem mostras. As tentativas dos familiares de Lygia Clark de interromperem a exposição no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, como foi noticiado no mês passado, evidentemente, não podem prevalecer.

Poder público

Nessa discussão, é necessário conter aquelas ideias brilhantes que pretendem, numa canetada, resolver todos os problemas – no mais das vezes causando inúmeros outros, até mais graves. Dentre as pérolas jurídicas que surgem, até como reação a atitudes descabidas, a alternativa preferida é sempre aquela que transfere ao ente público a solução das questões. Há diversos exemplos pipocando pelo país.

Já foi apresentada uma proposta de lei, por exemplo, que pretendia transferir à (ao) presidente da República a tarefa de decidir casos específicos de controvérsias provocadas por herdeiros teimosos. Não por acaso, já está em vigor, há mais de um ano, um decreto que permite ao ministro da Cultura declarar um bem como de interesse público cultural, o que possibilita seu monitoramento, fiscalização, proibição de venda, prioridade de compra pelo Estado etc. Para completar o rol de iniciativas pitorescas, o Ministério Público de Minas Gerais teve algumas vitórias relativas à apreensão de obras de Aleijadinho, ao que tudo indica com fundamento em uma lei do Império.

Vê-se que o perigo de ingerência descabida é enorme. Tanto o direito de autor quanto a privacidade e o direito de imagem, além de previstos na legislação específica, constituem garantias constitucionais que não podem ser usurpadas do indivíduo pelo ente público. A essa alternativa, melhor mesmo é deixar a cargo do Judiciário qualquer conflito.

A problemática é bem clara: o acesso à cultura e à memória. Qualquer que seja a dúvida, interessa que seja decidida justa e rapidamente, com a necessária consideração de que o direito à informação e à memória, assim como o acesso à cultura, são direitos constitucionais do cidadão.

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Taís Gasparian, 56, advogada, mestre pela Faculdade de Direito da USP, é sócia do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian Advogados