Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Questão semântica?

Quando polemistas dizem que uma questão é “semântica”, querem dizer que ela é secundária. Pensam que há uma ‘coisa’ no mundo e que é ela que interessa. Os nomes que a designam seriam ou irrelevantes ou estariam errados. Políticos e economistas são os militantes que mais caem nessa armadilha.

Qualquer interessado por questões como a relação entre língua, cultura, linguagem e ideologia, e – o que pode surpreender – pela linguagem científica, logo percebe que a questão semântica é fundamental.

Não há como ter acesso às coisas a não ser por meio das palavras. É por essa razão que cientistas são grandes usuários de metáforas para designar ou explicar ‘fatos’ (é uma forma de ‘aproximá-los’ do conhecimento anterior ou mesmo do senso comum).

Os fatos precisam de uma linguagem para ser expressos. E a linguagem pode enganar. Para fugir a esse problema, muitos cientistas ‘matematizam’ seus textos, por considerar que assim evitam o problema, ou que o superam.

Em certos casos, como a geometria, isso parece funcionar. Mas nas ciências humanas o truque não funciona. Ou funciona à custa do esquecimento do principal problema: a crença de cada teoria de que é ela que diz a realidade, o que, curiosamente, a transforma em ideologia no sentido mais comum da palavra.

Daí por que, de vez em quando, estudiosos, ensaístas, articulistas etc. tentam definir de novo velhas palavras, que, eles acham, perderam o rumo. Vejamos um exemplo.

No dia 06/06/2014 (Folha de S. Paulo, caderno ‘Mundo’), Marcos Troyjo apresentou sua avaliação das palavras ‘conservador’ e ‘progressista’. Elencou algumas variações e exemplos. Essas palavras já opuseram monarquistas a constitucionalistas, escravocratas a burgueses liberais, disse ele, acrescentando que os conceitos se embaralharam ao longo do tempo. Desfez-se a oposição entre manter privilégios econômicos e rearrumar as “camadas tectônicas” do status quo – são outras de suas palavras.

Atualmente, acrescenta, a dualidade reaparece na retórica “progressista”; sua “arenga” combate injustiças sociais (fruto do conservadorismo, explico ao leitor) e forças da globalização (nada progressistas; idem). É uma avaliação que ele defenderia como objetiva.

Mas o emprego do termo negativo ‘arenga’ para referir-se à retórica progressista (isto é, que os outros consideram progressista) denuncia a posição ideológica de Troyjo. Ele não qualificaria como ‘arenga’ um discurso contrário ao regime político chinês ou cubano ou venezuelano.

Vejamos um pouco mais de perto a palavra ‘conservador’, consultando um dicionário. Bons dicionários não só registram mais palavras, como também mais sentidos para cada palavra – o que, em geral, derruba as teses dos que defendem UM sentido para elas.

É comum que dicionários apresentem como primeiras definições os sentidos mais antigos ou mais literais. Um exemplo é a primeira definição de ‘conservador’ fornecida pelo dicionário Houaiss: o que conserva (ver abaixo).

Como o leitor pode não ser um frequentador de dicionários (além de, eventualmente, pensar que cada palavra tem ou deveria ter só um sentido), transcrevo a totalidade do verbete em questão do Houaiss e comento alguns aspectos que me parecem os mais relevantes.

Para Troyjo, de certa forma, a melhor definição de ‘conservador’ é a literal, ou alguma bem próxima (que conserva). Por isso, diz que conservadores adotam posições diferentes conforme seja diferente a situação que defendem.

Vamos ao verbete ‘conservador’. A definição geral é literal, como se pode ver (sempre que ocorrer c., leia-se ‘conservador’): o que conserva.

1 o que preserva de alteração, deterioração ou extinção
1.1 Rubrica: química.
substância química adicionada a produtos alimentícios para prevenir oxidação, fermentação ou outra deterioração usual, inibindo a proliferação de bactérias; conservante
2 aquele que defende ideias, valores e costumes ultrapassados e/ou que é contrário a qualquer alteração da situação que se atravessa, do que é tradicional ou da ordem estabelecida
Ex.: é um c. em moda
2.1 (1890) 
aquele que defende a manutenção do status quo político-social
Ex.: um c. fascista
2.2 Uso: pejorativo.
aquele que propugna pelo autoritarismo e é favorável à tradição, seja monárquica, eclesiástica ou liberalista nas suas formas burguesa e oligárquica, demonstrando hostilidade a inovações na moral e nas instituições
Ex.: um c. empedernido
2.3 Uso: pejorativo.
membro de partido político conservador ou que apoia a filosofia política de tais partidos
2.3.1 membro ou apoiante do Partido Conservador inglês
3 Derivação: por extensão de sentido. Uso: pejorativo.
o que é moderado, discreto, cauteloso
4 Uso: pejorativo.
quem é tradicional em questões de gosto, elegância, estilo ou maneiras
Ex.: ele é um c. no ramo da alta-costura
5 funcionário superior encarregado da guarda, administração e conservação de bens, monumentos e objetos pertencentes a instituições, públicas ou privadas, ou ao Estado, como museus, bibliotecas etc. (Obs.: ver uso a seguir)
Ex.: contrataram um novo c. para o museu
6 funcionário público encarregado do registro de compras, vendas e hipotecas de imóveis
Ex.: os c. do registro civil
7 Rubrica: termo jurídico. Diacronismo: antigo.
juiz que administrava a justiça de uma corporação e fazia a guarda dos seus privilégios
adjetivo 
8 que conserva a
Ex.: <as virtudes c. do formol> <instinto c.> <princípio c.>
9 caracterizado pela moderação ou prudência a
Ex.: <um traje c.> <uma estimativa c.>
10 cujas ideias, valores e costumes são ultrapassados e/ou que é contrário a qualquer alteração do que é tradicional ou da ordem estabelecida a
Ex.: <espírito c.> <um político c.>
11 Rubrica: linguística.
diz-se de língua ou dialeto que sofreu menos mudanças, relativamente a outros provindos da mesma língua-mãe

Perspectiva ideológica

Como se vê, há acepções para quase todos os gostos. Destaco algumas, até porque podem parecer contraditórias. O sentido 2.1 não é necessariamente uma espécie do ‘gênero’ sentido 2, como a enumeração dá a entender, porque os sentidos de 2 e de 2.1 são bastante diferentes: uma coisa é defender ideias ultrapassadas (quem as definiria assim?), outra é defender o status quo (definição próxima da de Troyjo).

Comparem-se essas acepções com 2.2: nenhuma daquelas têm a ver com defesa do autoritarismo. Alguém pode defender o status quo de forma democrática e tolerante.

A acepção 10 dá conta de muitos empregos da palavra. É talvez a definição mais abrangente (não importando tanto se é adjetivo ou substantivo). Ela pode valer para questões políticas e também, por exemplo, para a moda (um conservador pode ser contra saias curtas), para direitos iguais para grupos ou pessoas diferentes (cotas na universidade, união civil de homossexuais, acessibilidade especial para portadores de necessidades especiais, por exemplo) ou mesmo para greves ou manifestações de rua.

Veja-se, por curiosa, talvez, a acepção 3: conservador não dá bandeira, é discreto, moderado, cauteloso (não usa óculos coloridos e bermudas floridas).

Voltando à coluna de Troyjo: ele defendeu (legitimamente) um dicionário próprio, ou melhor, de interesse de uma perspectiva ideológica.

Todas as ideologias fazem o mesmo, é claro. O que é fácil de ver, mas difícil de reconhecer. Cada locutor acredita que sua ideologia não é ideologia e que, portanto, suas palavras vão diretamente para as coisas.

O caso comentado é só um entre milhares. Quem é ‘terrorista’? Quem é ‘bandido’ e quem é ‘jovem desajustado’? É uma ‘invasão’ ou uma ‘ocupação’? Foram ‘passeatas’ ou ‘manifestações’? Cogita-se ‘regulação da mídia’ ou ‘censura’? Cada grupo tem que pensar que é ele que se refere verdadeiramente às coisas.

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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas