Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O ‘discurso africanista’ dos ‘especialistas’

No último domingo, 18 de janeiro de 2015, no jornal Folha de S.Paulo, Jânio de Freitas criticou o artigo neocolonial de Ricardo Bonalume Neto, publicado dois dias antes no mesmo jornal. Jânio não deixou passar despercebida a estupidez tamanha proferida por Bonalume: “Os jovens países [da África] até deveriam agradecer aos ‘opressores’ [europeus] por coisas que nunca tinham visto.” Pois é, ainda um defensor do colonialismo genocida na África e entre os que publicam coisas na Folha “como gente da casa”, destacou Jânio. Bonalume ecoa a ideologia anunciada ainda no século 19 por Hegel, que, em seu texto Lições sobre a História da Filosofia (ou Filosofia da História, dependendo da tradução),sustentou, no início do século 19, que a África era composta por sociedades sem história.

Ainda pior, Bonalume (e seus editores) perpetuam ideologias como as proferidas pelos ditadores portugueses Antonio Salazar e Marcelo Caetano, conforme destacou Valentim Alexandre (em A África no imaginário político português – séculos XIX-XX, Penelope, 15, Lisboa, 39-52, 1995): Em meu livro O Ouro do Mar (Editora Annablume, 2014, na pg. 104), recorri a Alexandre para criticar discursos como os de Bonalume:

“Anacronismo autêntico, reproduzindo, por exemplo, as concepções de Salazar (para quem a África seria tributária do colonialismo, a quem deveria ‘o contato com a civilização cujos segredos lhes desvendou e colocou a seu dispor’), e de Marcelo Caetano, para quem os africanos não souberam ‘valorizar sozinhos os territórios que habitam há milénios, não se lhes deve nenhuma invenção útil, nenhuma descoberta técnica aproveitável, nenhuma conquista que conte na evolução da humanidade, nada que se pareça ao esforço desenvolvido nos domínios da Cultura e da Técnica pelos europeus ou mesmo pelos asiáticos’.”

O texto completo de Bonalume é ainda mais complexo e errático. Para não restar dúvidas, pode ser lido em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/204241-academicos-mais-uma-vez-atribuem-ao-colonialismo-europeu-caso-de-barbarie.shtml.

Ocorre que tanto a mídia brasileira quanto o discurso neocolonialista europeu mantêm a interpretação hegeliana acerca de África, no que foi emblemático o célebre discurso do então presidente francês, Nicolas Sarkozy, na aula inaugural da Universidade de Dacar, Senegal, em 2008. Na ocasião, Sarkozy disse:

“A colonização não é responsável por todas as dificuldades atuais de África. Não é responsável pelas guerras sangrentas que travam os Africanos entre eles. Não é responsável pelos genocídios. Não é responsável pelos ditadores. Não é responsável pelo fanatismo. Não é responsável pela corrupção, pela prevaricação. Não é responsável pelos desperdícios e pela poluição. A colonização foi um grande erro que destruiu junto do colonizado a estima por si próprio e fez nascer no seu coração este ódio por si que desemboca sempre no ódio para com os outros. O drama de África é que o homem africano não entrou suficientemente na História. O camponês africano, que há milénios vive com as estações, cujo ideal de vida é estar em harmonia com a natureza, só conhece o eterno recomeço do tempo ritmado pela repetição sem fim dos mesmos gestos e das mesmas palavras. Neste imaginário onde tudo recomeça sempre, não há lugar nem para a aventura humana, nem para a ideia de progresso. Neste universo onde a natureza comanda tudo, o homem escapa à angústia da História que obceca o homem moderno, mas permanece imóvel no meio de uma ordem imutável onde tudo parece estar escrito de antemão. Nunca o homem se transpõe para o futuro. Nunca lhe vem à ideia sair da repetição para inventar um destino para si. O problema de África, e permitam a um amigo de África dizê-lo, está aqui. O desafio de África é entrar mais na História. É ir buscar nela a energia, a força, a vontade de ouvir e de esposar a sua própria História. O problema de África é que ela vive demais o presente na nostalgia do paraíso perdido da infância” [ver Schurmans, Fabrice (2008), “De Hannah Arendt a Nicolas Sarkozy: leitura poscolonial do discurso africanista“, in Martins, Catarina; Matias, Marisa; Peixoto, Paulo; Pereira, Tiago Santos e Ribeiro, Margarida Calafate (2008, orgs.),Novos Mapas para as Ciências Sociais e Humanas: artigos pré-Colóquio, e-Cadernos, Coimbra,CES, pgs. 10-11-12].

Intelectuais e “especialistas”

É o que Schurmans chama de “discurso africanista”, o qual “continua a enclaustrar o preto (nègre ou nigger, muda a língua permanece o insulto) na sua pobre e triste representação”.

Exemplo recente do “discurso africanista” da mídia brasileira: a epidemia de ebola na África Ocidental no segundo semestre de 2014. Em muitos meios de comunicação, sobretudo a TV aberta, se destacava que um dos países mais atingidos era “a Guiné”, sem localizar que se tratava da Guiné Conacry, não da Guiné Bissau, com a qual o Brasil mantém relações estreitas (sobretudo com a presença, no Ceará a na Bahia, de cerca de mil estudantes guineenses nos campus da Unilab). As diferenciações, quando ocorreram, foram menos por iniciativa da mídia do que pela de expertos (ver, por exemplo, o artigo importante do historiador Américo Souza em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2014/10/25/noticiasjornalopiniao,3337052/doenca-deles-ignorancia-nossa.shtml). A epidemia de ebola, graças à cobertura superficial da mídia, é presente imaginário nacional como “doença africana”, o que não é correto, pois se circunscreveu a alguns países da África Ocidental, muitos deles erradicaram a epidemia (Mali, Nigéria etc.), e muitos sequer registraram casos (como sucedeu na própria Guiné Bissau).

Cabe entender por que a mídia brasileira dá azo a tais afirmações, circunscrevendo análises e a abordagens sobre a África contemporânea no espectro do “atraso” e da “barbárie”, o que causa problemas hoje na integração Sul-Sul. E cabe, sobretudo, combater discursos de “especialistas” como Bonalume.

Noam Chomsky, em A Manipulação dos Meios de comunicação. Os efeitos extraordinários da propaganda, atribui o discurso de poder presente nos meios de comunicação atualmente, como componente de “classes educadas”, forjando “consentimentos espontâneos” (Natrajan) [Natrajan, Balmurli (2003), “Masking and Veiling Protests. Culture and Ideology”, in Representing Globalization, Dheli/London, Cultural Dynamics, Vol.15 (2), 213-235] do grande público, com o propósito de atender aos interesses dominantes. São os “especialistas” os responsáveis pela “fabricação de consentimentos” (Chomsky) a serem veiculados pelos meios de comunicação para determinar a maneira de agir de determinado contextos sociais. Aos “especialistas” cabe a fabricação de entretenimento, de “ilusões necessárias e ultrassimplistas”. Outrossim, a nosotros, jornalistas e intelectuais e acadêmicos [o título do artigo de Bonalume é “Acadêmicos mais uma vez atribuem ao colonialismo europeu caso de barbárie”] contra-hegemônicos, cabe o bom combate ao pensamento único de tantos e tantos Bonalumes – diz ele, em determinado trecho de seu artigo na Folha: “E muitos dos ‘acadêmicos’ dando declarações são, infelizmente, brasileiros (o que claramente revela a decadência da universidade no país na área de humanidades). Eles não pensam? A ideologia turvou o pouco cérebro que ainda resta? Nenhum repórter consegue achar um professor universitário sensato?”

Os “especialistas” crescentemente ocupam, na mídia brasileira, o lugar dos intelectuais. Estes defrontam-se com o desafio de nem se transmutar em “especialistas” e nem se omitir de ocupar espaço nos meios de comunicação. Como fazê-lo? Talvez Edward Said nos auxilie:

“Devem ser os intelectuais a questionar o nacionalismo patriótico, o pensamento corporativo e um sentido de privilégio de classe, de raça ou de género. A universalidade significa correr o risco de ir para além das certezas fáceis que nos são fornecidas pelas nossas circunstâncias, pela língua e pela nacionalidade, que tão frequentemente nos protegem da realidade dos outros. Há o perigo de a figura ou imagem do intelectual desaparecer num mar de pormenores, e de o intelectual se transformar em apenas mais um profissional ou num número de uma tendência social. O intelectual é um indivíduo com um papel público específico na sociedade, que não pode ser reduzido simplesmente a um profissional sem rosto, um membro competente de uma classe que apenas trata da sua vida” [Said, Edward W. (2000), Representações do Intelectual. As Palestras de Reith de 1993, Lisboa, Edições Colibri, pgs. 16-25- 28].

Assim, talvez se ampliem as reflexões sobre contextos complexos da contemporaneidade, extrapolando opiniões tanto largas quanto rasas, como a de determinados “especialistas”.

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Túlio Muniz é jornalista, historiador, sociólogo e professor da Unilab