Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Fim da ‘CH’? Seria uma perda irreparável

Em 3/2, por meio de uma mensagem de correio eletrônico de um colega jornalista, fiquei sabendo da decisão do Instituto Ciência Hoje de suspender a publicação da versão impressa da revista Ciência Hoje. A mensagem trazia a seguinte circular, assinada pelo físico Alberto Passos Guimarães Filho, atual diretor-presidente do ICH:

“Aos amigos do Instituto Ciência Hoje

O Instituto Ciência Hoje, que atua há mais de trinta anos, é uma instituição sem fins lucrativos, que tem como missões a Educação e a Divulgação Científica. Mantemo-nos com as vendas de nossas revistas, Ciência Hoje e Ciência Hoje das Crianças, aos assinantes, às Prefeituras e ao Fundo Nacional da Educação (FNDE/MEC).

O Instituto atravessa hoje gravíssima crise financeira, com uma redução das vendas às prefeituras da revista Ciência Hoje das Crianças, de 5,5 milhões de reais em 2013 para 1,1 milhão em 2014.

Diante da crise, tomamos no fim de 2014 a difícil decisão de não mais produzir Ciência Hoje impressa, mantendo apenas a revista digital, a menos que alguma instituição próxima cubra os cursos de impressão, em troca de assinaturas da revista. Ciência Hoje sofreria ainda algumas mudanças para dispensar a contribuição de jornalistas. Solicitamos apoio para impressão à UFRJ e à UFMG, duas universidades com as quais temos uma tradição de colaboração; ainda não temos uma resposta definitiva.

Temos hoje uma dívida muito grande com nossos funcionários, que não temos como pagar; tampouco podemos demiti-los com o pagamento integral dos custos das rescisões.

Diante disso, decidimos reduzir em muito nosso quadro, demitindo esta semana 2/3 do pessoal e tentando fazer um acordo no sindicato para pagar as dívidas em parcelas, com recursos que, esperamos, entrem da venda das revistas das crianças para o FNDE/MEC ou de aporte de um possível sócio. Para complicar mais ainda o quadro, o edital do FNDE Periódicos, que usualmente é publicado nos últimos meses do ano, até hoje (28/01/2015) não saiu.

Nossa estratégia, que apresenta muitos riscos, diante de eventuais contestações na Justiça, baseia-se na expectativa de que o Instituto possa atravessar o atual período de crise, saldando suas dívidas nos próximos meses com os funcionários e restabelecendo as condições de atuação plena.

Como um dos membros fundadores, e atual Diretor Presidente do Instituto, vou continuar me empenhando para que o ICH possa seguir em sua missão pela Divulgação Científica e pela Educação, distribuindo milhões de revistas e instigando novas gerações de crianças e jovens.

Em consideração à nossa missão e aos nossos leitores, continuaremos na luta para alcançar a sustentabilidade do Instituto.”

Acho lamentável e espero que a decisão ainda possa ser revertida. Em todo caso, também acho que seja bastante lamentável (e sintomático) perceber que a nossa mais antiga revista de divulgação científica esteja mergulhada em uma crise financeira tão profunda.

Breve histórico

Em 2014, a Ciência Hoje completou 32 anos de existência. A revista foi oficialmente lançada durante a 34ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada na Unicamp, em Campinas (SP), de 6 a 14/7/1982. Nos primeiros anos, a publicação era bimestral; com o sucesso, porém, o intervalo entre as edições foi abreviado. A partir de 1987, o número de edições anuais passou de 6 para 11 (janeiro e fevereiro têm até hoje uma única edição). Na primeira década (julho de 1982 a julho de 1992), foram publicadas 82 edições (nºs. 1 a 82); na segunda (agosto de 1992 a julho de 2002), outras 102 (nºs. 83 a 184); na terceira (agosto de 2002 a julho de 2012), 110 (nºs. 185-294). A mesma regularidade se manteve nos últimos anos.

Em 1991, pouco antes de completar 10 anos de existência, a CH passou por uma primeira grande crise financeira. Lutando para sobreviver, as edições nºs. 70 (janeiro/fevereiro) e 71 (março) foram impressas apenas em preto e branco, ambas trazendo estampada na capa uma advertência aos leitores: “Ameaçada de extinção”. O grito de alerta foi ouvido. A revista voltou a respirar e o risco de desaparecer foi afastado, ao menos temporariamente.

A CH é não apenas a mais antiga, mas também a mais importante revista de divulgação científica publicada no país. Ainda que a Scientific American Brasil costume ser lembrada como outro veículo especializado relevante, há diferenças fundamentais entre as duas revistas. Por exemplo, os artigos publicados na CH são escritos basicamente por cientistas brasileiros, que espontaneamente submetem seus manuscritos para avaliação e eventual publicação. No caso da SAB, boa parte dos artigos é escrita por cientistas estrangeiros e, o que é pior, a revista não parece aceitar manuscritos espontâneos para avaliação, publicando apenas artigos encomendados.

Baixas tiragens

Em 1995, quando enviei o primeiro manuscrito para a CH, fui verificar os dados sobre a circulação da revista. Levei um susto: a média mensal de exemplares vendidos (assinaturas e vendas diretas) não passada de 15-16 mil exemplares. Para fins de comparação, basta dizer que o lixo que a Abril publica ainda hoje sob o rótulo de Superinteressante vendia, mais ou menos na mesma época, algo próximo a 400 mil exemplares por mês.

Em Juiz de Fora (MG), onde minha família e eu então morávamos, todas as bancas de revista da cidade recebiam mensalmente pouco mais de 20 exemplares. O número pode até ter crescido um pouco ao longo dos anos, mas, convenhamos, é um patamar irrisório. Testemunhei problemas semelhantes em Campinas (SP) e em Viçosa (MG), cidades que abrigam duas das mais importantes universidades do país.

Embora não tenha informações suficientes para “explicar” a crise atual, parece seguro afirmar que a tiragem reduzida está no centro da discussão. Nesse sentido, dois tópicos distintos deveriam ser examinados, a saber: de um lado, a questão dos gargalos na distribuição; de outro, a questão do conteúdo e da qualidade da revista.

O gargalo da distribuição…

Acho que não seria exagero afirmar que a distribuição e as vendas deveriam ser ampliadas, sobretudo dentro das universidades. A própria Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência conta (ou contava, até alguns anos atrás) com representantes em praticamente todos os estados brasileiros e eles próprios poderiam assumir um papel mais ativo nesse processo. Ao longo dos anos, eu mesmo testemunhei vários casos de colegas que achavam que a revista havia deixado de circular. E o mais preocupante: não são poucos os professores universitários que jamais folhearam um exemplar da CH – desconhecimento que me parece duplamente sintomático: além da distribuição acanhada, testemunha um pouco a burocratização e a apatia de nossa vida universitária.

O trabalho de distribuição deveria ser bem mais agressivo, independentemente de se estabelecer ou não parcerias com agências ou programas governamentais. Anos atrás, graças a uma dessas parcerias, a CH ganhou um fôlego extra: apoio financeiro do governo federal. Em troca, o governa ficava com uma fatia da tiragem mensal da revista. Esses exemplares eram então distribuídos para determinadas instituições e pessoas físicas, como os bolsistas de pós-graduação do Ministério da Ciência e Tecnologia (atual Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação). O aporte financeiro veio acompanhado de uma repentina ampliação no universo de leitores; ao que parece, porém, foi uma ampliação episódica: finda a parceria, não foram muitos os novos leitores que passaram a adquirir a revista por contra própria.

Deixando de lado a possibilidade de que novas parcerias sejam estabelecidas, eu arriscaria dizer que a tiragem média mensal da CH não deveria ser inferior a 50 mil exemplares. Há mercado para isso. Afinal, pense no seguinte: quantos estudantes de graduação frequentam as universidades brasileiras? E quantos são os professores universitários?

… e a questão do conteúdo

Olhando para o outro lado da moeda, caberia dizer que a revista experimentou algumas mudanças ao longo de sua história, tanto em termos de formato como, sobretudo, no conteúdo. Não vou me estender muito neste ponto, mas ouso dizer o seguinte: ao longo dos anos, os “donos” (a diretoria do ICH?) e/ou os editores da revista promoveram 1) mudanças no visual (e.g., a revista passou por sucessivas reformas gráficas, visando, entre outras coisas, facilitar a leitura); 2) a abertura de novas frentes (a revista passou a tratar de assuntos que até então não faziam parte do menu original); e 3) o conteúdo da revista passou a favorecer um discurso mais enxuto e, digamos, menos técnico e mais coloquial. Em poucas palavras, a abrangência temática foi ampliada, enquanto o nível dos artigos foi, de certo modo, rebaixado.

Os efeitos supostamente desejados – i.e., ampliar o número de leitores e, em última análise, alavancar as vendas –, no entanto, não parecem ter sido alcançados. A rigor, temo que os efeitos tenham sido outros, fazendo com que a CH perdesse parte de sua identidade como um veículo de divulgação científica de primeira linha. E aí, diante de possíveis encruzilhadas – e.g., sobre o público-alvo (alunos de ensino médio ou alunos universitários?) –, escolhas aparentemente ruins acabaram levando a revista a ir disputar mercado (mesmo que involuntariamente) com outras publicações, pouco rigorosas e bem menos precisas.

Nos últimos anos, li ou ouvi vários comentários a respeito das mudanças ocorridas na CH. De um lado, eram antigos leitores reclamando da “perda de qualidade e rigor” (em ocasiões anteriores, tive chance de chamar a atenção para o problema; ver, neste Observatório, o artigo “Considerações acerca do envelhecimento“); de outro, eram jovens estudantes dizendo que os artigos da CH, ao contrário, por exemplo, dos da SAB, eram “fáceis de ler” – um comentário que nunca me soou como elogio.

No fim das contas, penso que a revista carecia de uma boa sacudidela, mas será uma perda irreparável se a versão impressa de fato desaparecer. (É bom ressaltar, como foi dito na mensagem do presidente do ICH, que a versão impressa da Ciência Hoje das Crianças continuará sendo publicada.)

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Felipe A. P. L. Costa é biólogo, autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2ª edição, 2014)