Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A ameaça de ‘corporatização’ da mídia

‘Nossa República e sua imprensa vão crescer ou desaparecer juntas’ (Joseph Pulitzer, 1904)

‘Uma imprensa cínica, mercenária e demagógica vai produzir, com o tempo, um povo parecido com ela’. (Do mesmo autor, na Graduate School of Journalism da Columbia University, em Nova York)

O que eu prometi aos organizadores deste seminário foi uma conferencia bem diferente da que farei. Quero me desculpar por isso. Instado a definir o que traria, antes de ter tido tempo de me dedicar a essa decisão, pensei em atualizar uma conferência que fiz alguns anos atrás sobre tema correlato ao deste evento. Mas embora não tenha se passado muito tempo do momento em que a escrevi, me dei conta, ao relê-la, do quanto mudou o mundo e a realidade do jornalismo desde então.

Quando apresentei aquelas idéias sobre as relações entre ‘Ética, informação e controle’ estávamos, ainda, em um mundo bipolar, onde as duas grandes forças divergentes atuando sobre a política mundial moderavam-se uma à outra, o capital obedecia a controles muito mais rígidos que os de hoje e a principal ameaça contra a liberdade individual vinha, em geral, do abuso do poder do Estado. Hoje, desaparecida a União Soviética e instalada a incontestável hegemonia norte-americana, deparamo-nos com outra realidade: os Estados nacionais estão enfraquecidos, a economia global é pautada, em todos os setores, por uma competição desenfreada e predatória, há uma incoercível tendência de açambarcamento de todos os setores da economia pelas grandes corporações e um perigoso jogo de cooptação entre elas e o poder político.

Essa nova realidade não revoga a essência do que eu propunha na conferência anterior, que tinha em vista circunscrever e limitar o poder que cada órgão de imprensa pode exercer sobre os indivíduos e sobre a sociedade em que atua.

O raciocínio que estruturei para tanto tomava como ponto de partida que, entre as funções da imprensa, a principal é a de atuar como força neutralizadora do poder político. Daí seguia-se que a detenção dos órgãos de comunicação pelo poder político invalida a sua própria razão de ser. Isso elimina, também, a ‘solução’, entre aspas, da fiscalização do comportamento ético da mídia pelo Estado ou por alguma entidade por ele indicada, que deságua inevitavelmente na censura.

Continua sendo essencial, portanto, que, para cumprir sua principal função, a imprensa esteja nas mãos de particulares.

Descartada a intervenção do Estado como solução, eu propunha, como instrumento de saneamento dos vícios da imprensa, a fiscalização do público-leitor, que é, segundo minha experiência de 30 anos de militância diária no jornalismo, quem mais efetiva e eficazmente cobra bom comportamento ético da imprensa. E propunha também um esforço consciente da própria industria da informação para promover um revigoramento geral do senso de responsabilidade dos jornalistas – que deve ser institucionalizado pela criação de códigos de ética de conhecimento o mais geral possível.

Acredito que tudo isso continua valendo. E tenho aqui, para quem possa se interessar, cópias dessa conferência anterior, onde se sugere como fazer isso na prática.

No entanto, um problema muito maior se apresentou no meio do caminho. O fenômeno que o primeiríssimo mundo começa a enfrentar agora é uma versão potencializada de um drama que é velho conhecido do Brasil: o da ameaça de aliança entre conglomerados gigantes de mídia e esquemas de poder político num ambiente pouco propício ao desenvolvimento de vozes independentes.

Este é o perigoso inimigo a ser combatido.

O ovo ou a galinha?

No subconsciente de cada homem está fixada com clareza a idéia de que na competição sem limites há um único ganhador. Todos os demais são perdedores. E isto explica por que não existe um só indivíduo no mundo, os norte-americanos incluídos, que não tema o rumo que as coisas estão tomando na economia e não tenha saudades dos tempos em que havia limites para o crescimento das corporações e em que o dinheiro, pelo menos admitidamente, não era a única medida de todas as coisas. E, no entanto, esse processo segue inexoravelmente seu curso, à revelia de todos.

O que foi que falhou?

Falhou principalmente a imprensa, que é – ou foi – a alma da democracia americana.

O processo de ‘corporatização’ da imprensa nos Estados Unidos é, ao mesmo tempo, causa e conseqüência do exagero do processo de ‘corporatização’ da economia norte-americana como um todo e, por contaminação, do processo de ‘corporatização’ da economia global.

Só uma economia no mundo tem peso suficiente para arrastar para seus padrões de desenvolvimento todas as outras economias do mundo: a norte-americana. E só uma sociedade no mundo contava com uma democracia suficientemente forte e organizada para deter esse processo: a norte-americana. Mas a imprensa, ferramenta essencial de acionamento do poder do cidadão no processo decisório dos Estados Unidos, tornou-se parte interessada no processo, traiu a sua função original e deliberadamente se omitiu da obrigação de alertar o cidadão para o que estava acontecendo e para as conseqüências que isso poderia ter.

De certa forma o quadro brasileiro, onde nunca existiram leis de limitação da propriedade da mídia e proteção à diversidade de opinião, é uma antecipação em miniatura, mas levada às últimas conseqüências, do que apenas começou a acontecer nos Estados Unidos depois do relaxamento dessa legislação. A instrumentalização da mídia num ambiente que não favorece a diversidade de opiniões é um fator insidioso de subversão da moral pública que se aprofunda e se auto-alimenta, de geração em geração. Se esse processo não puder ser detido e revertido a tempo nos Estados Unidos, ele se transformará, com virulência proporcional à força da economia daquele país, num padrão mundial que, temo, virá a ser conhecido pelos historiadores do futuro como o grande turning point que desviou a humanidade, novamente, para um rumo de servidão…

Como foi nos EUA

A legislação que restringia o crescimento sem limites das empresas proprietárias de rádios, TVs e jornais nos Estados Unidos foi reforçada em 1975 pela Federal Communications Commission – a FCC, um órgão criado nos anos 1930 não para se preocupar com conteúdos, mas para regular o uso das concessões de freqüências de rádio e, mais tarde, também de TV.

As regras de 1975 permaneceram quase inalteradas até junho de 2003. Como nos Estados Unidos a mídia começou a se organizar em redes, de jornais, primeiro, de rádios e TVs mais tarde, desde o início do século 20 a compra de umas pelas outras começou cedo a desenhar cenários preocupantes, de controle de áreas inteiras do país por um único grupo de mídia. A legislação de 1975 visava preservar a diversidade de opinião, considerada essencial para a continuação da democracia no país, e estabelecia alguns parâmetros simples e eficazes para a consecução desse objetivo:

** Proibia-se que um mesmo grupo fosse proprietário de jornais e de televisões num mesmo mercado;

** Nenhuma empresa proprietária de televisões podia ter canais que atingissem mais do que 35% da audiência nacional;

** Uma mesma empresa só poderia ter dois canais num mesmo mercado se fossem canais de audiência pequena e se houvesse pelo menos mais oito canais disputando esse mesmo mercado;

** Uma mesma empresa não poderia possuir mais que uma das quatro grandes redes de TV aberta numa mesma praça;

** Proibiam-se as fusões entre as quatro grandes redes de TV aberta;

** Limitava-se, por vários meios, a propriedade cruzada de diversas estações de rádio.

Como poucos grupos, naquela altura, estavam fora desses parâmetros, ficaram consagradas as situações que configuravam violações dessas normas estabelecidas antes de 1975, que eram uns poucos casos.

Mas a idéia de que o negócio de informação, sendo um negócio que envolve poder político, era um negócio diferente dos outros e como tal deveria ser tratado, que sustentava o tratamento dado ao assunto pela FCC, começou a ser erodida ainda nos anos 1970, quando a idéia de infotainment, misturando informação e entretenimento, começou a tornar as coisas menos clara e serviu de pretexto para que começassem as pressões dos grupos proprietários de mídia por fusões e por maiores lucros.

Ônus da prova invertido

Mark Fowler, o titular da FCC de Reagan, sempre dentro do espírito geral do ‘quanto menos governo, melhor’ foi o autor da frase de que ‘as TVs não passam de torradeiras com imagem’, significando que não requeriam mais regulamentação do que elas.

Foi na esteira das mudanças aprovadas desde então que Rupert Murdoch montou a Fox, comprando uma série de TVs locais.

O Telecommunications Act, de Clinton, em 1996, colocou o andamento do processo de erosão da legislação de controle da propriedade da mídia em outro ritmo. Ele desregulamentou fortemente a propriedade de rádios e o setor passou por uma verdadeira razzia. Desde então, as operações de fusão e incorporação já envolveram 10 mil emissoras, no valor de US$ 100 bilhões. De lá para cá, 1.100 rádios já foram fechadas e, hoje, as três maiores cadeias controlam 80% dos ouvintes e do mercado publicitário. Nesse quadro, a emissora que insistir em atuar como veículo independente não tem como sobreviver comercialmente.

Com as novas tecnologias de telefonia e a internet bombando a new economy e a ignorância e a insegurança generalizadas sobre a natureza e as implicações dos novos meios de informação e comunicação que então alimentavam desenfreadamente a ‘bolha’ de Wall Street, novas definições sobre telefonia, cabo, TV a cabo, TV por satélite e outras, implícitas no Telecommunications Act, abriram brechas para reinterpretações das regras do FCC.

Na ânsia de desregulamentar e abrir o caminho para a ‘nova economia’, o controvertido parágrafo 202 dessa lei invertia o ônus da prova e determinava que a FCC revisse suas regras sobre propriedade da mídia a cada dois anos, ‘modificando as que não conseguisse demonstrar serem de interesse publico’.

Subia a pressão

Isso meteu o Judiciário no circuito e desencadeou uma onda de processos das companhias interessadas no levantamento das barreiras contra fusões, incorporações, propriedade cruzada e tudo quanto fosse obstáculo à sua própria expansão. O mote, em todas as empresas do mundo, era ‘crescer ou morrer’. Cada regra que caía, beneficiando uma corporação, obrigava as demais a seguirem o mesmo caminho. A cada nova fusão tornava-se mais fácil para o próximo candidato justificar seu pleito demonstrando que seria impossível se manter competitivo sem conseguir economias de escala iguais às do concorrente.

Para a FCC, em contrapartida, era cada vez mais difícil demonstrar a necessidade de preservá-los. O argumento das corporações era que a multiplicação dos ‘sites de informação’ na internet era uma alternativa válida para o desaparecimento de jornais, rádios e TVs independentes, capazes de apurar, processar e transmitir informações em regime de dedicação profissional, e não apenas, como provaram ser na maioria dos casos, apenas uma reprodução virtual do vozerio desorganizado das ruas.

O chamado D.C. circuit, tribunais de Washington chefiados por juizes conservadores ligados aos republicanos, foi onde a FCC sofreu as maiores derrotas com base no parágrafo 202. Sinalizado que por ali havia um caminho para furar as normas, ele passou a ser usado cada vez mais recorrentemente.

Sob o silêncio cúmplice ou a argumentação favorável da mídia, diretamente interessada em quebrar as barreiras, as fusões e incorporações iam acontecendo. E cada uma delas implicava alguma violação dos limites de 1975, que era tolerada na base de permissões temporárias da FCC, que ficava de exigir, mais adiante, a venda daquilo que ultrapassasse as medidas.

Nos bastidores, subia a pressão dos grandes grupos – agora gigantes de bilhões de dólares de faturamento – para mudar as regras da FCC.

‘Patrulha do silêncio’

Com Bush, Michael Powell, o filho de Collin Powell, chega ao FCC, aos 39 anos. Ex-militar, como o pai, ele abandona a carreira das armas depois de um grave acidente de jipe quando servia na Alemanha, que o põe um ano no hospital. Sai de lá para um curso de advocacia com especialização na legislação antitruste. Formado, passa a trabalhar como auxiliar de um dos juízes do D.C circuit. Sem currículo que justificasse tanto, torna-se o chairman da FCC em 2001.

Truculento em seu modo de falar, explica o que vem fazendo à frente dessa agencia com dois argumentos pouco inovadores:

1. que a multiplicação das fontes de informação na internet torna desimportantes as regras sobre a propriedade dos meios tradicionais;

2. que as queixas contra a concentração são, na verdade, queixas contra a qualidade da programação, e qualidade da programação não deve ser assunto do governo, ou caímos em pior emenda que o soneto.

Powell anuncia os seus planos desde o primeiro momento, para cumprir os prazos legais. E, em 2 de junho de 2003, convoca a votação dos cinco membros do FCC para derrubar as barreiras de 1975:

** Cai o embargo à propriedade cruzada de jornais e TVs;

** O limite para as TVs passa a ser de 45% da audiência nacional;

** Alteram-se as exigências para a propriedade de múltiplos canais (e tipos) de TV de tal forma que o monopólio se torna possível em quase todas as cidades do país, com exceção das megalópoles, onde o limite também é alargado;

Só a restrição à fusão das quatro grandes redes e as regras para rádios permanecem intactas.

O processo todo rolou em meio à mobilização para a guerra no Iraque, acontecimento que, sozinho, já forçou a mídia a mudar sua avaliação do governo Bush, iniciado sob forte questionamento de sua legitimidade. Isso facilitou a omissão da mídia em transformar a liberação proposta pela FCC num debate nacional das proporções que a importância do fato requeria. E, muito provavelmente, incentivou também a ‘boa vontade’ do governo Bush com os pleitos das grandes corporações, todas elas, sem exceções, já fora dos padrões admitidos pela lei de 1975.

Mesmo assim, a ‘patrulha do silêncio’ em cima do assunto tomou proporções impressionantes. As únicas forças que se mobilizaram de fato contra as mudanças foram ONGs – em geral relacionadas a interesses minoritários – que trabalharam diretamente sobre o Congresso, debaixo do lema geral de que ‘quanto maiores e mais orientados para o mercado se tornarem os conglomerados de mídia, menos espaço haverá para a veiculação de qualquer coisa que não sejam as preferências das maiorias’.

Ideologia, ganância e poder

Felizmente, diante da notícia da aprovação das mudanças, que foi a primeira que chegou aos ouvidos de mais de 70% dos norte-americanos, até então totalmente desinformados do que estava se passando, a mobilização direta sobre o Congresso cresceu exponencialmente.

Em 24 de julho de 2003, diante da revolta da opinião publica, a Câmara, sob pressão, aprova por 400 votos a 21 um adiamento para a autorização de TVs atingindo mais de 35% da audiência nacional. Permaneceu a autorização para propriedade cruzada de jornais e TVs numa mesma praça.

Em 3 de setembro de 2003, a Corte Federal de Apelação da Pensilvânia barrou todo o pacote de mudanças até o julgamento do mérito de uma ação proposta pela National Rifle Association.

Em 9 de março de 2004 a Comissão de Comércio do Senado bloqueia as mudanças da FCC por 12 meses. A medida ainda terá de ser ratificada nas duas casas.

Enfim, essa batalha ainda não terminou.

Mas, desde sempre está claro que uma combinação de ideologia, ganância e projetos de poder político vêm movendo esta guerra em que vai saindo gravemente ferida a essência da democracia americana, que é a sua imprensa independente de caráter local.

Ameaça de dissolução

As fusões e incorporações vêm matando jornais em ritmo alucinante, e reduzindo enormemente as fontes de informação ao alcance dos cidadãos. Em 1983, quando escreveu um livro sobre o encolhimento da imprensa independente no país, o reitor da Berkeley Graduate School of Journalism, Ben Bagdikian, mostrou que a grande massa dos americanos se informava com base em notícias produzidas e veiculadas por 50 companhias diferentes. Em 2004, na sétima revisão de seu livro, sobravam só cinco.

A Viacom (CBS, Paramount Pictures, Simon & Schuster, Blockbuster, Infinity Radios, com faturamento de US$ 25 bi em 2002), a Disney (rede ABC de TV aberta e muito mais, com US$ 26 bi de faturamento), Time Warner (CNN, AOL etc.; US$ 42 bi de faturamento), a General Electric (dona da rede NBC e muito mais, com faturamento de US$ 131 bi); a News Corporation, de Rupert Murdoch (dona da Fox Network e da Fox cabo, de 35 estações de TV locais, da 20th Century Fox, de jornais, revistas e editoras de livros nos EUA, Inglaterra e Austrália, da DirectTV; no mundo, da Star, na Ásia e da Sky, na Inglaterra, todos sistemas de TV por satélite com US$ 17 bi de faturamento).

Esses grandes conglomerados não são nem empresas de informação, nem empresas de entretenimento. A diminuição das restrições ao acúmulo de controle de veículos de comunicação assegura ganhos de escala às matrizes. Com o aumento dos lucros, elas passam a adquirir tevês, jornais, editoras e produtoras de filmes, controlando não só todo o conteúdo da mídia, mas, igualmente, os sistemas nacionais de distribuição desse conteúdo, por meio de sistemas de satélites e telefonia. São gigantescos produtores e exibidores de conteúdos para todo tipo de suporte, que ‘fecham’ seu próprio jogo monopolista por várias pontas, umas anabolizando as outras, misturando jornalismo, crítica e notícia com produção, exibição e venda de entretenimento, reduzindo a competição e ditando a pauta política e comportamental da Nação.

E, o que talvez seja o pior de tudo, a longo prazo, desvirtuando a natureza e o papel da imprensa. Os gigantes da mídia estão desmontando equipes e produzindo múltiplos noticiários levados ao ar em diferentes estações a partir da mesma mesa. À medida que programas noticiosos comerciais – inseridos em empresas de entretenimento cujas metas são, exclusivamente, proporcionar diversão e atrair receita – tentam manter uma audiência que tem centenas de canais à disposição, os editores de noticiário cada vez mais têm de recorrer ao sensacionalismo, ao escândalo e à simplificação, para manter os índices de audiência e o fluxo financeiro. Para disputar um emprego hoje, os profissionais do setor estão sendo forçados a deixarem de operar como guardiões da democracia e fiscais da ação do poder publico cuja ação deve ser orientada por um sentido fundamentalmente ético, para se transformarem em meros agentes da expansão da riqueza de um grupo de acionistas.

Ou seja, o chamado ‘quarto poder’, essencial ao funcionamento das democracias, está ameaçado de dissolução.

Lições brasileiras para os EUA

Como vimos se continuarem desmontando a legislação com que limitavam a propriedade cruzada dos meios de informação, os americanos, meros aprendizes em relação aos brasileiros em matéria de concentração da propriedade da mídia e, principalmente, de ligações perigosas entre ela e o poder político, vão se transformar, nesse quesito, num grande Brasil.

Pois é pela falta de uma legislação do gênero, que proteja os interesses dos consumidores sobre o dos detentores desses meios, que nós já estamos, há anos, mergulhados ‘no sensacionalismo, no escândalo e na simplificação’ crescentes na programação das mídias de massa, e submetidos, em vários estados do país, ao ‘coronelismo eletrônico’ dos oligarcas que, autopresenteando-se repetidoras da Globo ou de outras redes nacionais, que realimentam com verbas oficiais de seus próprios governos, conseguem monopólios regionais de informação e opinião pela manipulação dos quais se eternizam no poder.

Contagem não muito recente mostrou que os políticos controlam diretamente 1/4 das emissoras comerciais de televisão do Brasil: 60 de um total de 250. E esse número se refere apenas aos veículos que detêm concessão governamental para gerar programação. A Rede Globo tem 21 filiadas pertencentes a políticos, o SBT tem 17, a Bandeirantes, 9. Como 50% do faturamento das repetidoras é carreado para as matrizes, explica-se por que as televisões brasileiras, em mercados infinitamente mais pobres que o norte-americano, conseguem sustentar a produção em casa de toda a sua grade de programação, um dos fatores – mas não o único – que explicam por que a indústria da produção independente, em franca explosão em todos os países do mundo, nunca decolou no Brasil.

Imprensa admitidamente oficial

É preciso somar a isso o resultado da multiplicação em metástase das redes de telecomunicações sustentadas por igrejas das últimas duas décadas. Foi-se o tempo em que as novas confissões nasciam antes; hoje forma-se primeiro a rede de comunicações e em cima dela cria-se a confissão religiosa que irá sustentá-la. Cada uma dessas redes ‘religiosas’ acaba, assim que se consolida como potencial fabricante de candidaturas, criando também o seu braço político.

Essa distorção criou máfias políticas virtualmente indestrutíveis. Nos mercados publicitários incipientes do Norte e do Nordeste do país, onde não circulam verbas suficientes para sustentar, de fato, mais do que umas poucas estações de rádio, pululam as redes de rádio e TV do esquema do ‘coronelismo eletrônico’ e das novas igrejas, que se auto-alimentam: elegem os governadores e prefeitos locais que anunciam preferencialissimamente apenas nos seus próprios meios de comunicação, matando a concorrência de inanição. Calam, assim, todas as vozes dissonantes e se tornam ‘donos do pedaço’. E se, por acaso, alguma onda ética ameaçar varrer um ‘coronel eletrônico’ do cenário político, ela não chegará aos telespectadores, ouvintes e leitores locais, que ficarão sabendo do que se passa apenas através das lentes cor-de-rosa dos meios de comunicação dos próprios acusados. Por isso, todos eles escolhem, rapidamente, o caminho da renúncia, tendo a reeleição como certa.

Nos períodos eleitorais, aliás, entrará, nos intervalos desses ‘noticiários’, o ‘horário eleitoral gratuito’ – espécie de prêmio de consolação concedido aos políticos ou candidatos a políticos ‘sem mídia própria’, para uso em véspera de eleição. Nesses períodos, os veículos eletrônicos de massa ditos independentes estão proibidos de veicular qualquer tipo de informação sobre os candidatos que possa ser interpretada como uma opinião contra ou a favor de algum concorrente ou mesmo notícias que possam parecer (ou ser julgadas como) favoráveis a determinados postulantes a cargos eletivos. As notícias devem ser anódinas, como as do Diário Oficial. Mesmo que conheçam fatos desabonadores, os comentaristas das emissoras terão de se abster de revelá-los e até de explicar determinados assuntos. Mesmo os entrevistados dos programas de rádio e TV deverão ser ‘policiados’ para não manifestarem suas preferências eleitorais ou partidárias.

Por cima de tudo isso, existe, finalmente, o vasto aparato da imprensa admitidamente oficial, que também inclui todos os tipos de suporte. Cada ramo de média importância dos três poderes tem hoje o seu canal próprio de televisão. Nos estados a coisa se repete. E há ainda as rádios e TVs educativas e, diariamente, a Voz do Brasil. O número de jornalistas contratados pelo Estado é, enfim, certamente muito maior do que a soma dos empregados em todas as redações privadas. E, destas, apenas as voltadas para o jornalismo escrito – acessível somente aos 15% da população que não são afetados pelo analfabetismo funcional – podem ser de fato independentes, se quiserem sê-lo.

Leis simples e objetivas

Mas no front empresarial estarão circunscritas a disputar as migalhas de um mercado açambarcado por uma única rede que, graças aos expedientes descritos, detém, em média, bem mais que 50% da audiência nacional (chega a mais de 80% em determinados horários e locais) e de 70% do bolo publicitário, e aviltado pela presença de diversas mídias que vivem apenas subsidiariamente de verbas publicitárias privadas e, assim, podem praticar preços vis para disputá-las.

Não existe, por outro lado, nenhuma restrição à propriedade cruzada de diferentes meios de informação numa mesma praça ou em âmbito nacional para empresas a quem são dadas ‘licenças’ tão radicalmente diferentes de abordagem do mercado. Essas questões, aliás, são definidas entre ‘sócios’ das empresas afetadas, detentores de mandatos legislativos. Pelas normas por eles estabelecidas, proprietários de redes de TV aberta podem ser donos, também, dos carregadores de TV a cabo ou por satélite, e sem a obrigação de carregar concorrentes, escândalo proibido em todo o resto do planeta.

É esta a segunda parte da explicação do porquê não temos uma indústria de produção independente. A política para o cabo, aqui, de exclusiva responsabilidade de quem detém a outorga do sistema de carregamento, é de torná-lo caro para os consumidores e inacessível para inúmeros canais, de modo a que não prejudique os interesses monopolistas das grandes redes. Podem, igualmente, ser donos de jornais e rádios nas mesmas praças que atingem com suas TVs e subsidiar-se mutuamente em práticas que claramente caracterizam dumping tanto nos preços que cobram pela publicidade que veiculam, quanto na publicidade cruzada que se oferecem mutuamente, em detrimento dos concorrentes.

O Brasil não se libertará jamais de suas mazelas e nem se transformará numa verdadeira democracia antes de sanear o universo das indústrias da informação e do entretenimento. O instrumento para isto são leis simples e objetivas como as que estão sob ameaça nos Estados Unidos. A solução do problema não virá de tentativas de controlar diretamente o conteúdo de cada mídia, mas de um esforço competente e objetivo para regular a sua propriedade e o seu alcance de forma a garantir a maior diversidade possível.

Com essa diversidade garantida, o resto acontece sozinho.

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Jornalista, diretor de O Estado de S. Paulo