Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A arte do leitor ‘nariz de porco’

Os saudosos anos de estudos jornalísticos da graduação, tempo dos primeiros textos, quando absorvia os conselhos do meu professor Cláudio Júlio Tognolli sobre o desafio de se ter ‘nariz de porco’, no sentido da curiosidade, romper com o senso comum, ler a realidade e investigar o fato. Paciência do jornalismo que depois se expressa no escrever como uma arte, uma técnica derivada do processo de comunicação humana, mais amplo e mais profundo, envolvendo contexto e condições de produção do discurso (efeito de sentido).

Mais que nunca, a metáfora do nariz de porco pode ser usada como práxis não só para formação do profissional, mas também no processo de leitura dos textos midiáticos. Faz-se uma investigação das intenções do enunciado, as informações de seu locutor, a filiação discursiva e o contexto ideológico. Daí, precisa-se fuçar, remover as camadas intermediárias, analisar, criticar como o discurso materializado textualmente dentro de uma situação institucional, orientado segundo os critérios do canal, veículo donde os enunciados são transmitidos.

Os ‘colegas-patrões’

O enunciado como produto final se relaciona numa mescla construtiva entre agentes discursivos que se interagem, completando-se, formando o discurso como destaca Mikhail Bakhtin: ‘Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é uma orientação nesse mundo; é a reação à palavra do outro (uma reação infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas (…)’. O jornalismo é porta-voz do seu contexto, assimilando e redistribuindo o discurso como realidade nua e crua (ilusão da objetividade e imparcialidade do sujeito enunciador).

O discurso no veículo é um conjunto de idéias e práticas homogêneas que se entrelaçam formando textos heterogêneos como representações da realidade sócio-histórica e transmitida diversamente (som, imagem, hipertexto). Para que vai servir o nariz de porco? Analisar e interpretar essa construção discursiva, as características e funcionamento da sua formação que sustentam as empresas, os canais informativos, as matérias jornalísticas, dando a entender o processo de enunciação. O leitor nariz de porco precisa compreender que o redator assume a responsabilidade dos efeitos e conseqüências das informações, mas segue ordens de um empresário. E a empresa? Esta se comunica obscuramente, escondida, ocultada e absorvida nos sujeitos locutores do discurso, tornando-se uma entidade suprema da verdade. É a empresa o sujeito da ideologia.

Ao narrar o cotidiano e transmitir as informações, o locutor do discurso jornalístico afasta-se do pensamento complexo e especificamente esvazia-se em relação a uma análise mais densa do tempo, do espaço e do contexto em geral. No mais das vezes, o locutor das matérias jornalísticas repete o senso comum através da superficialidade textual, parafraseando o discurso institucional que o sustenta economicamente e ideologicamente. Assim, é ilusório a afirmativa que os gêneros jornalísticos deva conduzir a uma reflexão mais profunda da realidade. Todavia, isso não é impossível para o leitor nariz de porco que lê os signos ocultos aos mais ingênuos, fazendo uma análise profunda. Porque esses leitores procuram o que está estruturando os textos, o não dito, o silêncio, por exemplo. O nariz de porco procura além de pessoas, o contexto social-político-econômico, as idéias pautadas, a censura e autocensura dos agentes redatores e articulistas que inserem no texto jornalístico os pensamentos empresariais, bem como as experiências e informações de seus ‘colegas-patrões’.

Base econômica nunca é questionada

A partir disso, entende-se que mesmo o discurso jornalístico pretendendo ser um espaço dialógico heterogêneo, ele se limitará há um sistema de produção. A heterogeneidade do veículo se dá mais no espaço do periódico, nas diversas partes, nas reportagens, notícias e colunas assinadas que nas idéias pilares da redação. A presença de profissionais diversificados é camuflagem, pois fuçando um pouco mais se verá a idiossincrasia do dono do jornal conduzindo as construções enunciativas do veículo, apresentando um ensaio não muito profundo de um discurso social contaminado. Os textos informativos, nesse turno, são como películas finas sobre a opinião de caráter ideológico capitalista e conservador dos magnatas da comunicação.

Assim sendo, as notícias em geral tendem a relatar um fato, ou seja, toma uma linguagem narrativa de um evento, informa uma ação ocorrida, fantasia-se de testemunha do fenômeno. O leitor nariz de porco deve buscar romper esse invólucro do texto que serve como mostruário do social, do econômico, do político e do comunicacional. Numa análise crítica, deve-se perceber ainda uma tentativa do texto de manter o status quo, ou seja, não ir ao cerne da questão: os meios de produção em seu modelo atual. Por isso, a base econômica para a construção da realidade nunca é questionada, seja no ponto de vista sócio-econômico, ou mesmo para saber a intenção dos donos do poder nas suas comunicações.

Atitude crítica e paradigmática

O jornalismo como técnica de produção capitalista influencia a sociedade, mediando discursos onde se apresente. Apesar da interação e contextualização que tentam acompanhar a evolução social, dialogando num determinado tempo e espaço de uma maneira dialética, não há nada de novidade. A pasmaceira continua! Os textos, campo eclético, repetem em paráfrases o discurso elementar do patronato em múltiplos estilos e sofisticadas tecnologias comunicacionais. Desenvolvidos sob show, luzes e plim-plim, os textos formam uma amalgama densa que alcança o público, ampliando os limites numéricos dos sujeitos que crêem ouvir e ver a verdade dos senhores feudais da comunicação.

No entanto, não é impossível para o leitor nariz de porco fuçar, gerar opinião, pautar conversas, contribuindo para o desenvolvimento de reflexões e atitudes salutares e abrangentes. Assim, espera-se logo avizinhar uma profunda e comprometida atitude, crítica e paradigmática, uma proposta de rompimento com o sistema de focinheira que impede a multiplicação dos leitores nariz de porco.

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Jornalista e professor