Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A audiência na TV pública

Desde o final de fevereiro, a TV Cultura de São Paulo vem sendo questionada publicamente sobre o seu desempenho no Ibope. O debate começou no Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, à qual pertence a emissora, e logo ganhou páginas de jornais, revistas, além de blogs e sites. Como integrante do conselho, presenciei todas as discussões. Nem todos os argumentos, porém, chegaram ao conhecimento da opinião pública. Por isso julgo pertinente fazer aqui alguns esclarecimentos [ver ‘Governo critica baixos índices de audiência‘].


Comecemos pelos números do Ibope. Como o próprio presidente da Fundação Padre Anchieta, o jornalista Paulo Markun, declarou ao jornal Folha de S.Paulo no dia 17 de março, a audiência média (por minuto domiciliar) da Cultura, das 7 às 24 horas na grande São Paulo, é de 1,4%. Trata-se de um índice modesto, sobretudo quando comparado aos da Globo, que são dez vezes mais altos, segundo cálculos da própria Cultura com base em dados do Ibope.


Um quadro desalentador, certo? Errado. Esses números devem ser lidos com mais atenção. A Cultura tem menos telespectadores que a líder no Ibope, é fato, mas também tem muito menos dinheiro. O orçamento anual da Rede Globo (conforme foi divulgado pela Folha em 8/12/2008) é 36 vezes maior que o da Cultura e, quando levamos em conta essas proporções, as coisas começam a mudar de fisionomia.


Tome-se como exemplo a programação infantil da emissora, que registra entre três e quatro pontos. Melhor ainda: se considerarmos apenas o universo das crianças de 4 a 11 anos de idade, veremos que até 10% delas ficam ligadas na Cultura. Enfim, para quem gosta de contabilizar quantidade de telespectadores em função do dinheiro investido, os resultados ainda deixam a desejar, mas estão longe de ser pífios.


Cultura e informação


Falemos um pouco mais de cifrões. No ano passado, o orçamento da Cultura atingiu a casa dos R$ 204,4 milhões. Desses, apenas R$ 85,9 milhões vieram dos cofres do governo estadual. O restante teve origem em receitas próprias, como os serviços prestados a terceiros (à TV Justiça, por exemplo), os financiamentos viabilizados pela Lei Rouanet e a publicidade. Não é verdade, portanto, que o Estado de São Paulo destine anualmente R$ 200 milhões à Cultura, como chegou a ser noticiado. Ele investe bem menos do que isso.


A verdade é que investe pouco. O montante de R$ 85,9 milhões chega a ser tímido perto dos R$ 350 milhões reservados pelo governo federal, apenas em 2008, para a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que põe no ar a TV Brasil. É ainda mais rasteiro diante das fortunas que o poder público, em todos os níveis da administração, paga aos veículos privados pela veiculação de publicidade governamental.


Para que se tenha uma ideia, apenas no ano de 2007 a Presidência da República e seus principais ministérios ocuparam espaços publicitários avaliados em R$ 449,4 milhões pelo Mídia Dados, editado pelo Grupo de Mídia São Paulo. No mesmo ano, só os espaços publicitários do governo paulista atingiram o valor de R$ 59,3 milhões. O fato é que os governos põem muito mais dinheiro nas emissoras privadas do que nas públicas e, estranhamente, não se vê ninguém reclamando da qualidade dos programas comerciais patrocinados por verbas públicas.


Isso tudo quer dizer que devamos descartar o debate sobre a audiência da TV pública? De modo algum. A audiência é desejável. Quanto maior, melhor. Mas é preciso ir com calma. Para uma TV comercial, os índices de audiência vêm em primeiro lugar porque são a medida de sua mercadoria: o que ela vende para os anunciantes são os olhos da plateia – e quem mede a quantidade de olhos são os pontos do Ibope. Já para uma TV pública, o que mais importa é levar cultura e informação de qualidade aos diversos segmentos da população. A quantidade de telespectadores é um dos critérios a levar em conta, por certo, mas não é o único nem o prioritário (se assim fosse, bastariam alguns auditórios espalhafatosos no domingo e noticiários sensacionalistas nos finais da tarde para que todo mundo se desse por satisfeito).


Mais ousadia


A TV pública existe para ser uma alternativa ao mercado. Existe para ser diferente. Se se contentasse em reeditar as fórmulas da radiodifusão comercial, aí, sim, desperdiçaria cada centavo nela investido. Nós não precisamos de emissoras públicas que façam proselitismo governista – e também não precisamos delas para fazer eco aos ditames da indústria do entretenimento. Elas só são necessárias porque são de outra natureza. Se fossem iguais, seriam dispensáveis.


Uma TV comercial não pode se dar ao luxo de exibir programas de literatura ou de música clássica. Eles não dão lucro. Já a TV pública tem o dever de mantê-los na grade, pois os cidadãos que normalmente não têm acesso às salas de concerto ou aos saraus literários dependem dela para conhecer essas formas de arte. Do mesmo modo, quando difunde criações da cultura popular, a TV pública dá visibilidade a manifestações que sem ela minguariam na escuridão.


Claro que não se faz uma boa programação pública apenas com folclore e clássicos. Claro que não se pode dar de ombros para as preferências dos telespectadores. Tanto isso é verdade que uma das marcas das boas emissoras públicas é a sua capacidade de inovar e surpreender, dentro de uma grade diferente, diversificada e ampla.


Oferecer qualidade cultural sem se divorciar do público não é um desafio qualquer. É espinhoso. Melhorar a nossa TV pública requer muito mais do que técnicas espertas que prometem turbinar a audiência. Requer de nós a arte de promover o encontro entre as necessidades culturais de nossa gente e a inteligência, a inventividade, a capacidade de envolver o público.


Melhorar a nossa TV pública começa pela ousadia de compreendê-la.

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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP