Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A batalha está nas ruas e na imprensa

Há dois meses as manchetes dos jornais franceses giram em torno de um mesmo tema: a queda-de-braço entre o primeiro-ministro Dominique de Villepin e parte da sociedade francesa, que rejeita sua lei sobre o ‘contrato do primeiro emprego’ (Contrat Première Embauche – CPE). Há dois meses os políticos franceses debatem o contrato, os sindicatos se organizam para os protestos e as universidades estão bloqueadas pelo movimento anti-CPE que defende a greve e impede o acesso dos antigreve.


Na terça-feira (28/3), dia de greve geral e passeatas gigantescas no país inteiro, a manchete do Le Monde informava: ‘63% dos franceses recusam o CPE e o método Villepin’. Na mesma edição, um suplemento especial analisava o que o jornal chamou de ‘déficit de futuro’, a principal preocupação dos jovens diplomados.


Os primeiros a se levantarem contra a lei (que permite ao empregador demitir os jovens de até 26 anos nos dois primeiros anos do contrato de trabalho) foram os estudantes universitários, seguidos dos alunos de liceus e de sindicalistas. Mas a maré humana que foi para as ruas no dia 28 reuniu todos os tipos de assalariados. Eles avaliam que Villepin pede ‘que os jovens optem pela falta de emprego ou pelo emprego precário’ e prevêem que essa lei é apenas a primeira de uma série que precariza o emprego.


A rejeição ao CPE foi engrossando desde a primeira passeata até mobilizar entre 1 milhão a 3 milhões de pessoas (segundo, pela ordem, estimativas da polícia e organizadores) na terça-feira. Foi a maior das manifestações anti-CPE, mas talvez não seja a última, pois o primeiro-ministro está intransigente e reafirmou que não retira a lei, como exigem sindicatos, trabalhadores e estudantes.


Na sexta-feira (31/3), em pronunciamento ao vivo pela TV, Chirac não somente anunciou a promulgação do texto da lei, examinada e aprovada pelo Conselho Constitucional a pedido de políticos da esquerda, como considerou-a importante no contexto da luta contra o desemprego.


Chirac prometeu duas pequenas modificações na lei que não alteram em nada seu caráter discriminatório, segundo os críticos. A reação à fala do presidente foi imediata. Líderes das principais centrais sindicais (CGT, FO e CFDT), líderes do movimento estudantil e políticos da esquerda entenderam a promulgação da lei como uma provocação e confirmaram uma nova jornada de greve geral no dia 4 de abril, terça-feira. “O que vai ser preciso fazer para que o governo nos ouça e entenda que não queremos pequenos remendos na lei do CPE?”, perguntou o líder estudantil Bruno Julliard, presidente da União Nacional dos Estudantes da França. “Vamos voltar às ruas.”


Clamor das ruas


Na quarta-feira (29), o diário Libération não podia ser mais explícito: uma foto da passeata ocupava toda a primeira página do tablóide e o título dizia: ‘Surdo contra todos’. O subtítulo explicava o que o leitor já entendera: o surdo em questão é o primeiro-ministro Villepin.


No mesmo dia, na Assembléia Nacional, sede do Parlamento, um Villepin mais magro e abatido por dois meses de batalha afirmou que a República não pode aceitar ultimatos e lamentou que seu convite para uma reunião no dia seguinte tenha sido recusado pelos sindicatos, que agora pedem a anulação pura e simples da lei. Os ‘partenaires sociaux’ (parceiros sociais) não haviam sido consultados antes da aprovação da lei, como é hábito, e Villepin se valera de uma espécie de Medida Provisória para evitar discussão no Parlamento. Acusado pelos deputados de esquerda de orgulho e teimosia por não aceitar condições para a negociação, Villepin se vê cada vez mais isolado.


O Journal du Dimanche (de direita, do grupo Lagardère) publicou no domingo (26/3) uma pesquisa que mostra que 83% dos franceses ouvidos gostariam de ver o presidente Jacques Chirac diretamente envolvido na discussão política em torno do CPE. Com a crise que já dura dois meses, a imagem de Chirac se desgasta juntamente com a de seu primeiro-ministro, que despenca nas pesquisas de opinião. O presidente cancelou diversas viagens pelo país e marcou um pronunciamento para o fim de semana. Um dos conselheiros políticos de Nicolas Sarkozy, presidenciável pelo partido do presidente disse ao Libération que Chirac está a ponto de ceder por não suportar ver o povo na rua contra ele.


Aviso prévio


Em diversos editoriais, jornais de esquerda como Le Monde, Libération e o comunista L’Humanité, defenderam a retirada da lei polêmica e criticaram a falta de diálogo do governo com os sindicatos para a implantação de uma legislação que é o início de uma reforma visando à flexibilização das leis do trabalho, num país cuja história está mais próxima das revoluções e dos confrontos que das reformas.


Na segunda-feira (27), véspera do grande dia de mobilização nacional anti-CPE, Libération saiu com a manchete: ‘Aviso prévio para Villepin’, com uma ilustração que mostrava o primeiro-ministro sendo despedaçado por manifestantes anti-CPE e grevistas, mas também por seu rival Nicolas Sarkozy. Jacques Chirac assistia a tudo de braços cruzados.


À medida que a crise avança, cresce fora do país o interesse da imprensa pelo momento político crucial que vive a França. Jornais do mundo todo analisam a especificidade francesa de proteção ao trabalhador como uma aberração no mundo globalizado, ou como o último bastião de justiça social num mundo que tende ao ‘cada um por si’. A primeira visão foi expressa pelo americano Wall Street Journal e a segunda, pelo britânico The Guardian.




** ‘Se a França quer inverter a tendência, de vinte anos (crescimento pequeno e desemprego elevado) ela deve derrubar as barreiras da legislação do trabalho em todos os setores e não somente para os menores de 26 anos.’ (The Wall Street Journal, EUA)


** ‘Quando os estudantes da Sorbonne olham para além [do canal] da Mancha, vêem que a França tem poucas razões de querer copiar nosso milagre econômico. E o quanto há a ganhar combatendo nas ruas.’ (The Guardian, Grã-Bretanha).


As duas citações acima resumem o atual dilema da França – duas visões da economia em tensão. De um lado, as forças da globalização neoliberal, cujo porta-voz máximo é o Wall Street Journal. ‘Derrubar as barreiras da legislação do trabalho em todos os setores’, como apregoa o jornal, é o sonho da direita francesa, com o Medef (associação patronal) à frente do cortejo.


Por outro lado, a realidade do outro lado da Mancha denunciada pelo The Guardian: precariedade no emprego e direito absoluto do patrão de demitir, uma novidade no direito do trabalho francês introduzida pelo CPE.


No Brasil, segundo o ex-deputado Milton Temer, tanto os tucanos quanto neolulistas estabeleceram como uma das prioridades do próximo governo a flexibilização definitiva das leis trabalhistas, ‘sob o argumento falacioso de que assim se combate o desemprego, exatamente na linha dos governos conservadores de direita dos países capitalistas mais desenvolvidos, e sem oposição da CUT’, diz Temer.


No momento, segundo a avaliação de um deputado francês governista, ‘o governo Villepin está espremido entre a capitulação e o suicídio coletivo’. Segundo uma pesquisa Ipsos publicada nesta semana [26/3-1/4], 69% do eleitorado de direita e 74% dos simpatizantes do partido do presidente, de Villepin e de Sakozy – o UMP (Union pour un Mouvement Populaire) – são favoráveis à lei. Numa posição difícil, o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, o principal rival do primeiro-ministro na briga pela indicação do partido governista à candidatura presidencial, trava uma luta surda com Villepin sem, contudo, poder se afastar do governo que se desgasta para não parecer que abandona o navio que corre risco de afundar.


Em um editorial recente, Libération assinalava que os dois ministros ‘parecem menos interessados nas reformas, sem dúvida necessárias, do modelo social francês para estancar a gangrena do desemprego do que em seus destinos pessoais’.


O jornal de direita Le Figaro, em editorial desta semana analisou o impasse do governo, não sem tentar mostrar a posição de Nicolas Sarkozy como de conciliação. O ministro do Interior, que está em campanha aberta pela indicação de seu partido, fez um discurso diante de correligionários defendendo o ‘diálogo social’ e as conquistas sociais. Surfando sobre a crise e as dificuldades do governo Villepin, Sarkozy tenta se apresentar como o portador de uma mensagem de ‘ruptura’ à direita. Demagogo e populista, Sarkozy prega mudanças e manutenção da proteção social, como se isso fosse possível.


Serviço público


Os franceses estão preocupados com o desemprego, que é de 10% em números gerais mas atinge de 20 a 25% na faixa etária de 18 a 24 anos. As pesquisas de opinião dizem que eles são os europeus mais ansiosos e mais pessimistas com relação ao futuro. A globalização, aceita mais ou menos passivamente por todos os povos do mundo como uma fatalidade, é vista na França como uma catástrofe que leva fábricas e empregos para a China e outros países com mão-de-obra barata.


A maioria dos franceses, segundo as pesquisas, não crê na solução liberal. Mais que os outros europeus, eles defendem o Estado forte, protetor e, até aqui, provedor de saúde, educação e transportes de qualidade. Eles os europeus que mais prezam o serviço público. A maioria dos franceses vê o liberalismo como um carrasco a quem pedem mais um tempo.


Um jornalista francês assinalava em artigo recente que ‘nenhum povo europeu luta com tanta valentia contra essa nova ordem’ que quer dominar o mundo.


Livro vermelho das passeatas


Dominique de Villepin apenas começou a retocar o Código do Trabalho e a França foi para a rua, as universidades entraram em greve e os sindicatos convocaram à greve geral de 28 de março.


Em dezembro de 1995, outra data histórica, os trabalhadores foram para as ruas com o livro de Viviane Forrester (O horror econômico) nas mãos para protestar contra as reformas do primeiro-ministro Alain Juppé. Juppé teve de retirar sua lei que, mais uma vez, se resumia a reformas de cunho neoliberal. Agora, os estudantes levam para as passeatas o Código do Trabalho, que segundo eles está sendo reescrito por Villepin. O primeiro-ministro é acusado de ser a Margareth Thatcher da França por introduzir a precarização do emprego dos jovens.


Se depender dos sindicatos e dos trabalhadores e estudantes que desceram às ruas, o Código do Trabalho continuará intacto. Aliás, nesses dias, no canto direito da primeira página do Le Monde uma publicidade chamava a atenção: a editora Dalloz anunciava a edição 2006 do Code du Travail. O livro de capa vermelha tem tudo para se transformar em best-seller na França.

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Jornalista