Monday, 18 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

A batalha pela mídia é sobre raça e classe

Após dez dias de protestos entre forças rivais nas ruas de Caracas, reacenderam-se lembranças de tentativas anteriores de derrubar a revolução bolivariana de Hugo Chávez, existente há nove anos. Manifestações de rua que culminaram com uma tentativa de golpe de Estado em 2002 e um interminável lock-out da indústria petrolífera pareciam a única saída para uma oposição incapaz de vencer nas urnas. A instabilidade atual, entretanto, é um frágil eco daqueles acontecimentos tumultuados e a luta política trava-se num cenário menor. A batalha atual é pelos corações e mentes de uma geração mais jovem, confusa com os distúrbios de um processo revolucionário não programado.

Estudantes universitários de famílias abastadas enfrentaram jovens das favelas carentes que hoje se beneficiam dos royalties do petróleo gastos em projetos de educação universitária para os pobres. Essa batalha simbólica poderá tornar-se cada vez mais familiar na América Latina dos próximos anos: ricos contra pobres, brancos contra mestiços e negros, colonos imigrantes contra povos indígenas, minorias privilegiadas contra as grandes massas da população. A história pode ter chegado ao fim em outros lugares do mundo, mas neste continente os processos históricos estão a todo o vapor.

Uma televisão ‘colonial’

O debate é, ostensivamente, sobre a mídia e a decisão do governo de não renovar a concessão de uma emissora importante, a Radio Caracas Televisión (RCTV) e repassar seu sinal a um recém-criado canal estatal. Quais são os direitos dos canais comerciais de televisão? Quais são as responsabilidades daqueles subsidiados pelo Estado? Onde ficam os pesos da balança entre ambos? Na Europa e nos Estados Unidos, seriam questões acadêmicas, mas o debate na América Latina é entre vozes alteradas e apaixonadas. Na região, não há uma tradição significativa de emissoras públicas e, muitas vezes, os canais comerciais receberam suas concessões na época dos regimes militares.

Na Venezuela, o debate tem menos a ver com uma suposta ausência de liberdade de expressão do que com uma questão perene e obscura a que aqui se referem como ‘exclusão’ – uma espécie de abreviatura para ‘raça’ e ‘racismo’. A RCTV não era apenas uma organização politicamente reacionária que apoiou, em 2002, a tentativa de golpe contra um governo democraticamente eleito – era também uma emissora da supremacia branca. Seus funcionários e apresentadores – num país com uma população majoritariamente negra ou de descendência indígena – eram unanimemente brancos, assim como os atores das novelas e dos anúncios que veiculava. Era uma televisão ‘colonial’, refletindo os desejos e ambições de um poder externo.

Aprendendo a filmar

Durante a festa de despedida que a RCTV realizou no mês passado, quem mais aparecia na tela eram umas belíssimas jovens, louras e de cabelo comprido. Esse tipo de imagem é um excelente trabalho de televisão para espectadores masculinos da Europa ou dos Estados Unidos e aquelas louras, lânguidas, são, de fato, figuras familiares dos concursos de Miss Mundo e Miss Universo, nos quais as filhas de imigrantes europeus recentes são invariavelmente as principais candidatas da Venezuela. Sua onipresença na tela, entretanto, impedia a emissora de apresentar à sociedade um espelho do que procurava servir ou entreter. Assistir a um anúncio de uma emissora comercial venezuelana dá a impressão de se ter sido transportado para os Estados Unidos. Tudo se baseia numa sociedade moderna, urbana e industrializada – o que significa bem longe da experiência da maioria dos venezuelanos. Seus programas – argumenta Aristóbulo Istúriz, ministro da Educação de Chávez até recentemente – incentivam o racismo, a discriminação e a exclusão.

Os canais estatais recém-criados vêm fazendo algo completamente diferente – e incomum, no competitivo mundo da televisão comercial. Os programas que produzem parecem estar ocorrendo na Venezuela e exibem uma parcela da população que viaja de ônibus, pelo interior, ou de metrô, em Caracas. Assim como em qualquer outro país do mundo, nem todas as venezuelanas são belezas naturais. Muitas são velhas, feias e gordinhas. E atualmente têm voz e têm rosto nos canais de televisão do Estado. Muitos são surdos, ou deficientes auditivos. Agora, em cada programa, há uma interpretação pela linguagem de sinais. Muitos camponeses têm dificuldade para se exprimir. Sua perigosa luta pela terra não vem apenas sendo observada pelo documentário realizado por um cineasta urbano. Estão aprendendo a fazer, eles mesmos, os filmes.

Revolução cultural

Blanca Eekhout, diretora da Vive TV, o canal cultural fundado pelo governo há dois anos, criou o slogan: ‘Não veja televisão. Faça.’ Foram criados cursos de cinema em todo o país. Lil Rodríguez, o afro-venezuelano que é diretor da TVES, o canal que passa a transmitir pelo sinal da RCTV, afirma que a emissora se tornará ‘um espaço útil para resgatar valores que outros modelos de televisão sempre ignoram, particularmente nossa herança africana’. Com tempo, os excluídos ganharão voz na nova TV.

Pouco disto está em discussão no diálogo de surdos nas ruas de Caracas. Para os estudantes universitários que protestam nas ruas, o argumento da mídia é apenas mais um trunfo para criticar o presidente, ainda muito popular. No entanto, enquanto choram a perda de suas novelas favoritas, já vêm tomando consciência de que sua perda poderá ser bem maior. Como filhos da oligarquia, talvez em breve tenham que sair do país. Caras novas vêm emergindo das favelas, desafiando-os – uma nova classe, conquistando rapidamente educação e planejando tomar seus direitos de cidadania.

Poucas semanas atrás, Chávez delineou seus planos para uma reforma universitária. Novas faculdades e escolas técnicas criadas através do país irão diluir o prestígio das instituições mais velhas – que ainda são o bastião dos ricos – e a batalha pela mídia logo irá submergir numa luta mais ampla, pela reforma da educação. Chávez embarcou num desafio à ordem estabelecida, que há muito tempo prevalece na Venezuela e no resto da América Latina, e espera que a mensagem de sua revolução cultural encontre eco através do continente.

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Jornalista