Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A cartilha “errada” do MEC

Responda-me, caro leitor, uma coisinha simples: quando você está a fim de convidar um amigo, uma amiga, para tomar uma cervejinha, você diz “E aí, vamu tomá u´a gelada?” ou “Prezado nobre, acompanha-me à degustação de uma cerveja?” Se você for uma pessoa desde planeta, certamente falará algo próximo ao primeiro exemplo. Mas não fique espantado. Isso de jeito nenhum significa que você é burro ou não sabe falar direito. É característica de toda linguagem ser falada de forma diferente (ora mais, ora menos) em relação à sua escrita dita “formal” ou “padrão”.

É nesse sentido (de que se escreve uma coisa e fala-se outra) que a professora Heloísa Ramos tenta contribuir com a publicação do livro Por uma vida melhor, impresso e distribuído pelo Ministério da Educação via Programa Nacional do Livro Didático a 4.236 escolas. Partindo, ao que me parece, dos pressupostos desenvolvidos pela teoria variacionista da Sociolinguística, a autora simplesmente chama a atenção para a realidade de que falamos uma língua e escrevemos outra. Afinal, para estar adequado à norma padrão de escrita, quem é que nunca sofreu com uma crase, uma concordância verbal, regência nominal, coisa do tipo?

De um lado, especuladores políticos acusam o MEC do PT de distribuir cartilhas com erros gramaticais que incentivam a escrever e falar errado. Perigoso jogo político jogado por especialistas em especulação que, por trás, não estão nem um pouco preocupados com o “uso da língua”, e sim, em desocupar logo os cargos que eles perseguem. De outro, não-especuladores políticos (no sentido não visarem necessariamente a uma nomeação de Ministério, de Secretaria), que se estendem desde alguns deuses da Academia Brasileira de Letras até viventes do cotidiano comum (professores, jornalistas, alunos, catadores de latinhas analfabetos), são levados pela maré do “estão assassinando a língua portuguesa”.

Uma posição corajosa

A questão é: não se pode assassinar algo que não existe! A língua, tal como propôs Ferdinand de Saussure em 1916 no seu famoso Curso de Linguística Geral, simplesmente não existe. Para Saussure, a língua seria um sistema completo e abstrato, possível de ser estruturado e analisado objetivamente por meio de critérios que, pelo lado bom da coisa, permitiram a instituição da Morfologia, da Fonologia e da Sintaxe. Mas, a respeito da fala cotidiana, e principalmente da Semântica (área que se dedica ao sentido das palavras), a Linguística que desconsidera elementos sócio-históricos como, por exemplo, as condições de produção, das quais o funcionamento de uma fala ou de um texto são constituintes (e isso é fundamental à compreensão), é falha logo de início.

Em outras palavras, o que quero dizer é que essa ideia de língua perfeita, como se houvesse um punhado de palavras à disposição do falante, bastando a este saber as regras e as leis de uso para um bom desempenho verbal (tal como previa a equivocada retórica aristotélica), é radicalmente falsa. A língua não é uma instância suspensa em um mundo metafísico. Ela se constitui no movimento, no acontecimento, se cria nas práticas cotidianas muito diversificadas dos sujeitos falantes em suas relações com o simbólico, com o discurso, com a história, com o inconsciente. Por isso, as pessoas falam de modos diferentes, escrevem de modos diferentes e assim sempre será. Supor que se pudesse atingir um nível perfeito de escrita ou de fala perpetua divisões sociais e preconceitos do tipo: ele é burro, pois escreve errado/não tem estudo, pois não sabe falar direito.

Quando a professora Heloísa propõe considerar “os menino pega o peixe”, o problema a ser pontuado não é se se fala errado ou certo, como gritam agora alguns experts:“MEC distribui cartilha com erros gramaticais e grafias incorretas”. Trata-se de uma corajosa posição que, como diz o próprio título do livro, prevê olhares sobre a língua Por uma vida melhor, por consideração às diferenças sócio-histórico-econômicas e, principalmente, sobre aquilo que causa essas diferenças.

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Professor e funcionário público