Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A Cobra e a mídia

Se na tradição cristã a cobra simboliza a tentação, a traição e o pecado, na política brasileira quem carrega o ofídio no sobrenome tem com a imprensa um comportamento errático e contraditório. E como o mimetismo é outra característica notável tanto dos répteis quanto de certos meios de comunicação, a interação entre as duas espécies é de tal monta que não se sabe quem é o mímico e quem serve de modelo. Geralmente o benefício é mútuo, mas há registros de colisões. Não costumam ser fatais, é bem verdade, mas evidenciam demanda de coerência. A irritação da deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP) com a TV Globo é passageira, faz parte dessa paisagem, mas merece registro.

Quando uma ferrenha oposicionista reclama da mídia, estamos, aparentemente, diante de um paradoxo. Afinal, trata-se de queixa de beneficiário. Desentendimento de compadres que se deleitam com tramas inconsistentes, mas funcionais para seus interesses de curto prazo. Tomemos como exemplo o chamado ‘escândalo do mensalão’. Meses de entrevistas bombásticas, reportagens ‘definitivas’, folhetinização de CPIs e relatórios parciais mal-ajambrados não conseguem comprovar sua existência. Pouco importa. O objetivo é colonizar o imaginário do eleitorado. Nem que o preço seja o sacrifício das etapas distintas do fazer jornalístico. Pauta, apuração, redação e edição são subordinadas a procedimentos que não observam quaisquer preocupações com regras de verossimilhança. O deslocamento de gênero é imperativo. A seleção e organização dos fatos dá lugar à narrativa farsesca. Trata-se, como destacou Luis Fernando Verissimo, ‘de propagar a tese de que um governo de origem popular não tem competência nem para esconder sua sujeira sob o tapete’. Para isso, vale tudo.

No campo midiático, a dobradinha Veja-TV Globo tem sido notável. A revista, que ocupou o nicho da extrema-direita, constrói histórias rocambolescas. A TV repercute as matérias da publicação da Abril em seus telejornais de sexta-feira e sábado, dando-lhes abrangência e ares de verdade. Pelo espaço que detém uma estrutura monopolística, a Globo é o eixo articulador de qualquer empreitada política. Os demais veículos, por mais prestigiados que sejam, desempenham um papel secundário. Enquanto ‘Homer Simpson’ assiste ao noticiário, a direita aplaude o espírito de equipe da mídia brasileira.

Movimento pendular

Ora, se é assim, qual a causa da irritação de Zulaiê Cobra com a cobertura da imprensa sobre as atividades do Congresso? Por que sugerir ao presidente Aldo Rebelo (PCdoB-SP) que acionasse a Procuradoria da Câmara para tentar amenizar as críticas de TVs e rádios? O que a move nessa investida contra forças aliadas? As respostas estão muito mais no âmbito dos costumes do que nas estruturas. No Brasil, por singularidades de sua formação, é impossível compreender atores e instituições sem uma prévia imersão na micropolítica cotidiana.

A deputada é oriunda da classe média urbana brasileira. Como tal, oscila entre o autoritarismo conservador e o anseio pelo moderno. Procura ocultar a ideologia de autoridade que norteia sua práxis, pela modernidade de alguns engajamentos. Provavelmente, quando jovem, Zulaiê participou de lutas feministas, movimentos contra o regime militar e manifestações contra o racismo. Isso, no entanto, não elimina os traços ideológicos mais fortes que marcam esse extrato: a recusa da cidadania plena, a incapacidade de distinguir entre o público e o privado e a crença no recurso à força como garantidor da ordem. Destaque-se, aqui, que isso perpassa, mas não condiciona sua opção partidária. É do PSDB como poderia ser de qualquer outra legenda. Combina a ditadura de mercado com o velho patrimonialismo de forma desenvolta. Analisá-la fora desse contexto é torná-la ininteligível, sem sentido.

O movimento pendular que caracteriza seu grupo de origem explica os distintos recortes que formula sobre o papel do jornalismo. Ora defende a liberdade de imprensa, ora prega abertamente a censura. Desnecessário dizer que tais oscilações certamente se estendem à concepção do que seja uma sociedade democrática. Eis o traço comum entre parcela expressiva da classe média conservadora, os setores políticos que a representam e a produção simbólica que avaliza. Uma matriz autoritária com verniz democrático. Um discurso de algibeira sem a perspectiva ético-política que materialize uma vontade de mudança.

Ícones do pensamento crítico

Vamos aos fatos: na edição de 19/1, O Globo informa que ‘alguns deputados culpam a imprensa pela insatisfação da opinião pública, que os levou a aprovar mudanças, como o fim do pagamento de subsídios extras nas convocações extraordinárias e a redução do recesso’. A parlamentar paulista teria sido uma das mais veementes: ‘A Câmara tem que se manifestar sobre isso. Hoje, qualquer apresentador de TV se sente no direito de fazer deboche, achincalhar os deputados. Não se trata de censura, mas de manter o nível, acabar com os exageros’. Da tribuna, foi mais explícita e nominou o veículo: ‘Senhor presidente, sua chegada foi muito providencial porque no plenário estou ouvindo que a Rede Globo tem feito muitas críticas a todos nós. A coisa está ficando vergonhosa’.

É emblemática a súbita guinada de Zulaiê. Há menos de dois anos, quando o governo enviou ao Congresso projeto de lei criando o Conselho Federal de Jornalismo, sua posição era radicalmente distinta. À declaração do presidente Lula de que eram covardes os jornalistas que não defendiam a proposta da Fenaj, reagiu com veemência: ‘Lula está ditando regras como se não tivesse o mínimo conhecimento da Constituição federal. Quer se transformar em dom Lula, o monarca. Covarde é quem toma esse tipo de atitude para restringir a liberdade de imprensa no país’.

Não consta que, ao longo da crise recente, tenha feito algum discurso propondo a moderação e a ‘manutenção do nível’ quando o alvo de comentaristas e apresentadores de TV era o Executivo. É provável que, pelo contrário, tenha interpretado as imprecações como sinal de amadurecimento da democracia e das instituições brasileiras. Jabor e Diogo Mainardi, por certo, foram vistos como ícones do pensamento crítico.

E o Dimasduto?

Quando reclama de achincalhe, a incoerência deita cátedra. Afinal, abusou das prerrogativas de parlamentar ao chamar o presidente Lula de bandidão. Usou sua imunidade para afrontar outros direitos, como a honra das pessoas e das instituições. Não lhe faltaram mídia e aplausos. No entanto, imaginem o estardalhaço se o discurso de Zulaiê tivesse, em outro contexto, sido feito pelo presidente. Muitas páginas seriam dedicadas ao pouco apreço de Lula por instituições caras ao Estado de Direito.

Mas a colisão é pedagógica. Permite uma compreensão menos superficial de processos No pacto intra-elites que marca a história republicana do país, as relações entre imprensa, poder político e interesses econômicos são puro jogo de espelho. As concepções contra-hegemônicas não devem esquecer que, no Brasil, não haverá transformação possível sem uma política que objetive mudar a ordem informativa vigente. Enquanto não abolirmos a propriedade cruzada e as estruturas oligopólicas dos meios de comunicação, qualquer afirmação de mudança não passará de pantomima. Ilusão cara que leva ao eterno retorno do atraso.

Em tempo: e o ‘dimasduto‘, hein? Pode até ser falso, uma fraude grosseira feita por amadores. Mas os documentos que estão em mãos da CPI, Polícia Federal e Controladoria Geral da União são emblemáticos. Também circulam na internet e nas redações da grande imprensa. Imaginem se o suposto esquema de corrupção em Furnas, que teria abastecido o caixa eleitoral tucano, tivesse outros beneficiários. O que hoje deve ser apurado com cuidado – ou nem isso – já teria se transformado no ‘maior escândalo da história política brasileira’. Fácil, fácil adivinhar as capas de Época e Veja. Denúncias de ‘recursos desviados para campanha de um candidato à Presidência, de dois ministros, dois governadores, dezenas de deputados, vários líderes partidários e ex-ministros’ fariam salivar os melhores editores do ramo. Mas, felizmente, vivemos num país onde a imprensa é ínclita e ilibada.

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Professor-titular de Sociologia da Facha, Rio de Janeiro