Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A construção simbólica da imprensa

A publicação das 12 caricaturas do profeta Maomé pelo jornal dinamarquês Jyllands Posten, retomadas por diversos jornais europeus, causou inúmeros protestos no mundo muçulmano, a exemplo do incêndio no consulado da Dinamarca no Líbano, no domingo (5/2). A divulgação dos desenhos também reacendeu a controversa questão da liberdade de imprensa e de seus limites.

Mas o assunto espinhoso serve para discutir principalmente aquela prática cotidiana da imprensa que ela mesma sempre ignora. Trata-se, neste e em muitos outros casos, de identificar a auto-imagem dos meios de comunicação no contexto social no qual eles agem.

Na sexta-feira 3/2, o editorial do vespertino Le Monde citou o artigo 1º da Constituição francesa: ‘A França é uma República indivisível, laica, democrática e social. Ela assegura a igualdade, perante a lei, de todos os cidadãos, sem distinção de origem, raça ou religião. Ela respeita todas as crenças.’ O cotidiano engatou, na frase seguinte, a convicção de que ‘os mandamentos e proibições religiosas não poderiam ficar acima das leis republicanas, correndo-se o risco, neste caso, dos piores desvios e inquisições.’

Mesmo que o jornal tenha condenado, de certa forma, as publicações – os indivíduos que praticam as religiões ‘devem ser protegidos contra toda discriminação e intenção de injúria baseado na religião’ –, o artigo termina defendendo a liberdade de expressão. Afinal, ‘um muçulmano pode chocar-se com um cartum, sobretudo um malicioso, de Maomé. Mas uma democracia não pode instaurar censura sem passar por cima dos direitos humanos’.

Se um regime democrático implica a aplicação prática de termos como igualdade (principalmente perante a lei), o mesmo vale para a imprensa. Sempre às voltas com o poder e dotados da denominação ‘o quarto poder’, os meios de comunicação, por vezes, esquecem a quem servem.

Ao sol ou na sombra

Uma espécie de equivalente francês deste Observatório, o site Action-Critique-Médias publicou, no dia 23/1, artigo extenso de Henri Maler sobre as elites da (e na) mídia, retomando nele alguns conceitos desenvolvidos pelo sociólogo Pierre Bourdieu (principalmente no que se refere à teoria dos campos). Entre estes termos, Maler fala, principalmente, em distinção, construção simbólica, dominação, consagração e legitimação.

De acordo com o autor, o senso comum coloca as elites no topo de todos os grupos sociais, com destaque para funções de direção econômica, política e cultural. Entre elas, ‘a oligarquia administrativa, a nobreza do Estado, as universidades e as chefias editoriais’.

Contudo, na prática, ‘as elites existem também nos discursos que mantêm sobre si mesmas. Elite é (…) uma palavra da tribo ou das tribos distribuídas no território da dominação. É sobretudo (…) um produto da luta de classes que se permite uma auto-atribuição de uma função social eminente. Essa função é construída com palavras; ela reivindica um mérito fora do comum e (…) se qualifica pela desqualificação.’ Quando decide sobre a publicação ou não de uma matéria, uma história sobre determinados personagens da vida pública ou da política, a imprensa atribui-lhes um lugar (ao sol ou na sombra). As diferentes maneiras de dizer o mundo social acabam por construí-lo simbolicamente.

Fator esquecido

Não são os meios de comunicação que detêm todo o poder de decisão sobre os papéis dos atores sociais. Mas as palavras auxiliam nessa construção simbólica das elites. Elas consagram e legitimam sua dominação sobre os grupos mais desprivilegiados. E, determinando o lugar desses atores, a imprensa também consagra seu próprio lugar ao lado das elites. Com direitos de analisar, criticar e opinar, mas com deveres de informar.

Publicando os desenhos de Maomé, os diversos jornais europeus manifestaram solidariedade ao dinamarquês Jyllands-Posten, defendendo a liberdade de imprensa. Entretanto, precisamente em casos como este, a parcialidade (involuntária) da imprensa – não nos esqueçamos da busca diária pela neutralidade – se torna perigosa. Ao que parece, as conseqüências negativas suscitadas pelo debate estão longe do fim, e a Europa deverá prestar atenção especial ao desenrolar dos fatos.

A auto-imagem da imprensa, próxima às elites, não está totalmente incorreta. É preciso lembrar, no entanto, que tanto como criticar os opositores da liberdade de imprensa, radicalismos que ferem princípios básicos da condição humana e outros, os meios de comunicação servem a todas as esferas da sociedade. Afinal, eles mesmos são um seu componente essencial.

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Jornalista, pós-graduada em Ciências da Informação e da Comunicação pela Sorbonne (Universidade Paris IV)