Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A Copa particular de Dunga

Até os generais da ditadura estão falando. Lendas vivas do regime autoritário, personagens como Leônidas Pires Gonçalves e Newton Cruz andaram aceitando os holofotes e as perguntas incômodas do repórter Geneton Moraes Neto. Até eles, que teriam (e talvez ainda tenham) tudo a esconder, vieram jogar o jogo da verdade – ou das verdades, não importa. Esse jogo que o técnico da seleção brasileira se recusa a jogar.

Conseguir que essa bola rolasse solta no Brasil foi uma longa batalha, bem mais árdua que uma Copa do Mundo. No pelotão de resistência, a geração de Jô Soares emplacava bordões como ‘perguntar não ofende’ – e o jovem de hoje custará a crer o quanto isso era engraçado, num tempo em que fazer perguntas era um ato arriscado. Talvez com Dunga o bordão volte à moda.

Nas últimas Copas, vários técnicos da seleção se viram no paredão das perguntas incômodas. Zagallo conta que em 1994, quando era coordenador da equipe, quase teve uma crise de identidade: as pessoas o viam na rua e diziam ‘Romário’. Foram meses de clamor implacável pelo atacante, cujo nome virou bordão dos jornalistas nas entrevistas. Em nenhum momento Zagallo e Parreira (o técnico), que chegaram ao comando da seleção durante a ditadura, caíram na tentação de desclassificar a imprensa.

Resposta da história

Romário acabou indo à Copa dos Estados Unidos e virando herói do tetra, mas voltaria a ser pesadelo oito anos depois. Dessa vez para Luiz Felipe Scolari, o rude Felipão, que aguentou o mesmo bordão por mais tempo ainda – sem jamais afrontar repórter algum por ouvir pela enésima vez a mesma pergunta.

Em sua simplicidade, Felipão seguia uma equação cristalina: o repórter pergunta, eu escalo, e cada um deve saber o que está fazendo.

A única pessoa que não poderia desconfiar da sua escolha era ele mesmo.

Fincou pé, não levou Romário para o Japão e trouxe o penta. Sabia que seu combate era contra as seleções adversárias, não contra a imprensa.

Ainda sob o regime militar, o técnico Telê Santana se irritava com o cerco asfixiante dos microfones, que mais de uma vez o atingiram no rosto – empurrados pela sofreguidão dos repórteres questionando a seleção de 1982.

A pergunta de plantão: por que Telê escalava um time sem pontas? Na TV, tinha até bordão do Zé da Galera, personagem de Jô: ‘Bota ponta, Telê!’ Naqueles tempos de liberdade vigiada, seria fácil para o técnico recorrer a um artifício de ‘segurança’ para manter a imprensa distante e controlada. Não só não fez isso, como jamais destratou um jornalista por insistir naquela pergunta – a que a própria história se encarregaria de responder: dali em diante os pontas desapareceriam de todos os times do mundo.

Telê tinha razão, mas nunca arrogou a si o monopólio dela. Entendia que o contraditório é um capítulo da verdade.

Sem eco

Parece simples, mas nem todo mundo entende. Dunga, por exemplo, prefere falar sozinho. O contraditório o ameaça, o ultraja. A seleção brasileira é seu primeiro emprego como técnico, mas suas reações dão a impressão de que os jornalistas invadiram sua casa para lhe dizer como educar seus filhos. Aquilo ali é problema dele, dá a entender.

A sucessão de grosserias contra repórteres, o show de delírios paranoicos (‘Você fez um monólogo para me irritar!’, bradou certa vez a um jornalista) e a evidente convicção de que a imprensa é um mal desnecessário não poderiam acabar bem. Dunga resolveu que vai ganhar a Copa apesar dos jornalistas.

Com um bom repertório de cotoveladas e carrinhos sem bola nos bastidores, o técnico da seleção montou sua retranca à prova desses seres inconvenientes.

Um quarto de século depois do fim da ditadura, voltamos ao jogo em que perguntar ofende. Geneton pode entrevistar quantos generais quiser, mas de Dunga e seus comandados não arrancará uma palavra. Pela primeira vez os humoristas não terão acesso direto aos ídolos da seleção. Do lado de lá do arame farpado, ninguém ouvirá falar de Ronaldinho Gaúcho, Neymar ou Ganso – nomes que o Brasil tanto repetiu só para irritar Dunga.

Na África do Sul, o técnico finalmente encontrou a paz. Só fala e ouve o que quer. O terreno está livre para suas parábolas sobre sexo e sorvete, ou para postulados como o do seu cabeça de área Felipe Mello, segundo o qual bola boa ‘é como mulher de malandro’, gosta de ser chutada. A estupidez sem eco não soa nem tão estúpida assim.

Caras e bocas

No tempo do regime militar, dizia-se que o milagre econômico e a conquista do tri no México legitimaram o autoritarismo. Se vier o milagre do hexa, que ele não sirva para colar o selo Dunga de qualidade nas teorias bastardas de controle da imprensa.

Mas não se pode comparar Dunga com os generais da ditadura. Eles não faziam caras e bocas em comercial de cerveja, gritando que ‘é a nossa hora!’ A hora era deles, e não precisavam gritar. Bastavam uns tapas em quem discordasse. Sem dúvida, uma tática mais ofensiva.

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Jornalista