Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A crise, os intelectuais e a mídia

Ao abordar o tema ‘mídia’, na longa entrevista concedida à revista Caros Amigos (nº 104, novembro/2005), a professora Marilena Chaui confessa ter ficado ‘apavorada’ com o número especial daquela revista sobre ‘como nascem as notícias’. Explica-se:

‘Eu tinha uma visão crítica clássica sobre os problemas dos meios de comunicação em geral como empresas privadas que se definem por seus interesses de mercado e esses problemas no Brasil (…) Eu dispunha como elemento de análise só da compreensão ampla e mais abstrata da situação dos meios de comunicação no capitalismo. Bom, aí, quando li essa matéria (…) Foi possível compreender com maior clareza onde está a violência e onde está verdadeiramente a corrupção (…) Porque uma coisa é você dizer: no capitalismo tudo é mercadoria, portanto os meios de comunicação são a mercadoria e a notícia é mercadoria, o jornalista é mercadoria. Outra coisa é você ter uma estrutura de tipo orwelliana em que você produz o fato’.

Para os analistas mais antigos do campo que hoje se chama ‘comunicacional’, é sempre auspicioso verificar que uma professora do calibre de Marilena Chaui se aproxima de um dos pontos essenciais para a compreensão do poder da mídia contemporânea. Para vários desses analistas, tem sido evidente o quanto a ‘visão clássica’, até mesmo da parte do mais avançado pensamento da esquerda política, passa ao largo da nova inteligibilidade requerida para a abordagem do poder midiático.

O que hoje surpreende a professora e militante política não surpreendia meio século atrás a um analista de mídia como Daniel Boorstin. Em seu livro The Image, ele já sugere, por meio do conceito de pseudo-event, como os meios de comunicação são capazes de produzir uma realidade própria, dando margem a uma nova ontologia dos fatos sociais.

Essa nova ‘ontologia’ tem sido explorada desde então por ensaístas e pesquisadores de latitudes diferentes. A ela se deve a glória de pensadores do pós-modernismo, como Jean Baudrillard, mas também de pesquisadores que expõem claramente como se dá a construção midiática do acontecimento.

Um excelente exemplo é Construir o Acontecimento, do sociólogo argentino Eliseo Verón, publicado há duas décadas: uma pesquisa financiada pela Companhia de Eletricidade e Energia Atômica da França demonstra minuciosamente como o acidente da usina nuclear de Three Miles Island (EUA), reproduzido pela imprensa francesa, gerou uma realidade própria que tinha mais a ver com o filme Síndrome da China (em cartaz na época) do que com a factualidade do acidente.

Escala inédita

É compreensível, entretanto, a surpresa de Chaui quando se leva em conta que os setores acadêmicos mais clássicos ainda não se deram plena conta da especificidade dos estudos de mídia, da autonomia teórica do campo comunicacional, esboçada progressivamente ao longo da última metade do século passado. Para esses setores, ainda é a sociologia (herdeira direta da filosofia), constituída um híbrido de compromisso social e espírito de cientificidade, que melhor faria compreender, graças à sua racionalidade discursiva, a realidade social em qualquer um de seus aspectos ou dimensões.

Até mesmo a esquerda marxista, na atualização prática de suas análises da contemporaneidade, é atravessada por essa mesma sociologia, teoricamente combatida. É que o trabalho sociológico consiste basicamente em buscar uma explicação racional das regras de funcionamento da sociedade por meio do conhecimento das práticas e das representações sociais. O problema é que de tanto interpretar para tentar conhecer, reduzindo sempre suas perguntas a questões de método, o cientista social arrisca-se a saturar conceitualmente os fenômenos de sociedade, gerando o paradoxo de transformar a realidade social em espelho do discurso sociológico.

Em termos mais simples, em vez de apenas explicar o fenômeno, a ciência social também o constrói, na medida em que naturaliza as suas próprias regras de interpretação ou seus próprios modos de elaboração do conhecimento.

O que estamos querendo mostrar agora é que as ciências sociais fazem à sua maneira a mesma coisa que a mídia, só que esta última o faz numa escala socialmente inédita na História, da qual a sociedade ainda não sabe devidamente como proteger-se. Daí o ‘pavor’ alegado pela professora de filosofia:

‘Então me dei conta, lendo essa reportagem [a de Caros Amigos], não daquilo que a gente já sabia, que é o poderio das empresas de comunicação, mas é o quanto a sociedade brasileira está desprotegida diante disso. Porque ela é levada a interpretações, a tomadas de posição, a práticas a partir da decisão inteiramente cínica e violenta de alguns a respeito de qual é a informação que vai ser dada, quando, de que modo e com que fim (…) É a realização efetiva, na minha opinião, de uma atividade fascista’.

Virtude implícita

Como já acentuamos, esse tipo de pavor é antigo em textos que há décadas os críticos da cultura contemporânea produzem sobre a esfera midiática. Não há muito de novo nessa constatação. A própria língua, com sua sintaxe e suas regras de enunciação, tem algo de ‘fascista’, como observa Roland Barthes em seu discurso de posse no Collège de France. E, no entanto, não é mais o velho fascismo político que agora está em jogo, mas um novo tipo de poder (gente como Norbert Wiener, Burroughs e Deleuze já o chamou de ‘controle’), que demanda novos modos de inteligibilidade para a sua compreensão.

Categorias como oligopolização, manipulação, alienação, fascismo e outras advindas da vulgata sociológica não ajudam muito a entender o que realmente está se passando.

Não que os fenômenos designados por tais conceitos tenham desaparecido, mas a realidade contemporânea da mídia e da virtualização do mundo requer um afinamento conceitual, inclusive para a idéia de ‘informação’, que não pode ser vista como portadora de uma virtude implícita, desde que não manipulada.

Por outro lado, entender que a mídia produz realidade não implica deduzir que toda e qualquer realidade social, toda e qualquer crise seja produzida pela mídia. É preciso simplesmente prestar mais atenção que se vem pensando sobre comunicação.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente da Biblioteca Nacional