Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A dialética do porrete

O Globodeu uma nota, mas não teve maior destaque na imprensa brasileira o discurso de Barack Obama no Dia do Veterano (8 de julho), quando afirmou o presidente da maior potência militar do mundo: “É graças aos soldados, e não aos sacerdotes, que podemos ter a religião que desejamos. É graças aos soldados, e não aos jornalistas, que temos liberdade de imprensa. É graças aos soldados, e não aos professores, que existe liberdade de ensino. É graças aos soldados, e não aos advogados, que existe o direito a um julgamento justo. É graças aos soldados, e não aos políticos, que podemos votar”.

Seria esta uma simples bajulação do poder militar? Afinal, as guerras imperiais norte-americanas continuam além das fronteiras nacionais, esteja quem estiver à frente do Salão Oval, preto ou branco, republicano ou democrata, e não seria, portanto, de se estranhar que o primeiro mandatário do país estivesse puxando o saco de suas tropas.

Há algo mais do que isso, porém. Obama é razoavelmente culto, cursou ciências sociais em universidade, dispõe de assessores desse nível ou maior e certamente está a par das idéias do mais brilhante cientista político do século XX: Carl Schmitt. As idéias que presidem à sua fala no Dia do Veterano têm o lastro conceitual de Schmitt.

Mancha nazista

Quem foi Schmitt? Alguns minutos no Google bastam para qualquer neófito em ciência política se dar conta de que não se trata de flor que cheire muito bem, ao menos na vida política. Entre 1933 e 1936, essa figura intelectual foi membro destacado das falanges nazistas e com uma convicção tal que, ao contrário de vários outros intelectuais alemães que aderiram, não titubeava em deixar claro o seu compromisso com os ideais partidários.

O problema é que, apesar dessa mancha séria no currículo, Schmitt permanece até hoje como um importante do Estado, senão o mais original do século, cultuado pela direita letrada e bastante estudado pelos acadêmicos de esquerda que, embora raramente o citem (a maioria de suas obras continua no original alemão…), respeitam a argúcia de seu aparato conceitual. De modo muito simplificado: na determinação conceitual de política, Schmitt defende o primado do fenômeno político sobre o jurídico (o que implica a prevalência do jogo do poder sobre o normativismo das leis), afirmando que no conceito do político “só pode ser obtido mediante a descoberta e a identificação das categorias especificamente políticas”. E onde se daria essa identificação? Para ele, na discriminação entre amigo e inimigo.

Distante das concepções do liberalismo ou de outras de “mundo como forma política do ser em comum” (Hannah Arendt), Schmitt enxerga na base da política o antagonismo concreto que se verifica entre um Estado e outro (por exemplo, durante uma guerra) ou no interior de um Estado, quando se produzem conceitos “secundários” de política, a exemplo de política partidária, política social etc. Mas a rigor, só se as representações tiverem um sentido polêmico –– como na guerra ou na revolução, onde se manifesta o agrupamento amigo/inimigo –– é que se encontrará a essência do político. A possibilidade real de luta deveria estar sempre presente quando se fala de política.

Schmittiano, sem sutileza

São bem mais complexos do que isso os conceitos que fazem Schmitt famoso entre os especialistas, a exemplo de sua originalíssima concepção de soberania, segundo a qual uma ordem se apoia no poder excepcional de decidir e não num sistema normativo vigente. Aí reside, para ele, a essência do poder político, que se torna visível quando se consegue ocultar o regime jurídico que normativiza o seu exercício. Donde o caráter político do Estado, unidade suprema que monopoliza o poder de decidir na exceção. A partir desse tipo de raciocínio, há detalhes temíveis: o que ressalta numa democracia não é a sua identificação com a vontade do povo, mas a prática dessa identificação, que consiste “nos meios para moldar o controle do povo, ou seja, a força militar e política, a propaganda, o domínio sobre a opinião pública por meio da imprensa, organizações partidárias, reuniões, educação do povo, escolas”.

Em termos práticos, democracia seria a prática da força militar e ideológica. Nos textos de Schmitt se pode chegar a essa conclusão depois de uma travessia atenta por seus eruditos ou brilhantes meandros conceituais. O discurso de Obama no Dia do Veterano é schmittiano, mas sem a sutileza do politólogo alemão. Obama simplesmente esquece o lado ideológico (propaganda, imprensa, educação) e põe em primeiro plano a razão última do poder político: o respaldo militar. Uma maneira sutil de interpretar isso seria dizer que o discurso é sintoma do reconhecimento do fim da hegemonia americana (hegemonia implica poder ideológico, por consenso) e atualidade do sistema imperial.

Outra maneira, nada sutil, é dizer: Ou dá ou desce!

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[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]