Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A diminuição da maioridade penal

Se querem diminuir a maioridade penal, é preciso justificar essa alteração no Código Penal com números. O primeiro deles já é alarmante: mais de 90% dos crimes no Brasil não são devidamente apurados e punidos. E se estivermos falando em homicídios, esse número aumenta, segundo dados da TV Globo de 2014 (matéria veiculada no Jornal da Globo de 29 de abril); nesses casos, cerca de 92% não seriam apurados. Logo, qualquer tentativa de estabelecer um panorama próximo da realidade dos fatos e dos crimes cometidos no Brasil já começa comprometida pela impunidade.

Mesmo assim, se querem alterar um Código Penal – é o que está previsto na PEC171 – precisam se basear nesses dados, posto que os 90% que não foram apurados não podem ser atribuídos nem a maiores nem a menores de idade. Ou seja, estamos falando, antes de qualquer coisa, de cerca de 10% dos crimes. Dito de maneira mais clara: esses 10% são o montante a partir do qual se poderia montar qualquer argumento; eles são os nossos 100% para discussão.

Se o objetivo for realmente o de diminuir a criminalidade no país, temos de saída um pressuposto bastante claro: o de que grande parte dos crimes cometidos nas cidades esteja sendo praticado por esses menores de 18 anos. E não há dados contundentes sobre isso. Outro índice que deveria aparecer no argumento de quem defende a diminuição da maioridade é o de eficácia na diminuição do crime nos mais de 50 países que já optaram pela medida. Isso também não se confirma.

Mas alguém pode argumentar, muita calma nessa hora!, comparação entre diferentes Estados é um terreno movediço, pois os sistemas carcerários, os educacionais e as organizações sociais em geral são diferentes. Concordo plenamente. E aí o Brasil também já sai em desvantagem, pois nosso sistema carcerário tem demonstrado total falta de eficiência na inibição ou diminuição do crime.

Os deputados que aprovaram a PEC da diminuição

Muitos defensores da diminuição da maioridade contentam-se com um discurso infundado de que a reincidência no crime dos menores que passam pelas Fundações socioeducativas é imensa. E uma leitura menos apressada e de diferentes fontes pode facilmente mostrar que a reincidência é maior entre aqueles que saem do regime carcerário para maiores de idade do que entre os que passam pelas Fundações.

Esse discurso que pretende responsabilizar o menor de idade pelos males da cidade contou nos últimos anos com a ajuda de parte da imprensa para se tornar verdade na cabeça da população.

Como fazem isso? Se dados (Globo, Fundação Casa, Secretaria Nacional de Segurança Pública), mostram que a maior parte dos jovens que passa pelo regime socioeducativo não reincide no crime, como podemos nós viver com essa nítida impressão de que as Fundações de recuperação dos jovens e o ECA deram errado? Simples. Se sete de cada 10 jovens que saem das Fundações não voltam a cometer crimes, e esse é o número aproximado das fontes citadas acima, a mídia só faz repercutir a história dos três que reincidiram, que voltaram a cometer crimes. Logo, programas televisivos, telejornais sensacionalistas e jornalistas defensores de deputados reacionários se concentram em fazer aparecer insistentemente a história desses 30% que reincidem. Ao não mostrar a história dos 70% que voltam para suas vidas sem cometer crimes, essa mesma imprensa nos causa a impressão de que os 30% são “na verdade” 100%.

Notem, não se trata de inventar um dado. Ele existe. Trata-se, sim, de articulá-lo de forma a causar a impressão de que três em cada 10 são na verdade todos.

Assim se constitui a narrativa de que os menores infratores são em grande medida os responsáveis pela criminalidade nas cidades. O que não contam esses formadores da opinião sensacionalistas é que 25 dos 42 deputados que aprovaram a PEC da diminuição na Câmara estão respondendo hoje a processos por crimes; boa parte, crimes de corrupção.

O cansaço da impunidade

Percebe-se hoje que alguns periódicos de grande circulação e influência (Globo, Folha de S.Paulo, Diário de S. Paulo) têm assumido essa função de esclarecer à população a mentira que eles estão apoiando (87% da população apoia a PEC171). É preciso registrar aqui que essa tentativa de esclarecimento precisa ser intensificada em todos os meios de comunicação para que a opinião pública seja formada em bases mais sólidas.

Se o que está em jogo é o interesse público, é urgente contar a história dos que passaram pelas Fundações socioeducativas e não reincidiram no crime (que são a maioria), pois somente isso pode desconstruir a vertigem da falência do ECA que a imprensa ajudou a incutir em nossas opiniões mal refletidas. É preciso noticiar que o ECA e as Fundações não deram errado; apenas precisam ser aprimorados. É deles que tínhamos que estar falando, pois o ECA foi uma conquista do início da década de 1990, que visava, e continua visando, à preservação da vida. Coisa que definitivamente presídio nenhum no Brasil é capaz de fazer.

Compreende-se que esse apoio massivo da população à diminuição da maioridade penal tenha a ver com um cansaço no que diz respeito à impunidade, logo, uma vontade de justiça. Porém, a falta de informação e esclarecimento não permite a população compreender que a diminuição da maioridade não fará mais justiça no Brasil. E se o problema é informação, que a imprensa assuma a responsabilidade.

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Cristiano de Sales é professor de Comunicação Social