Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A face humana da crise

Uma imagem vale por mil palavras? Eis uma questão antiga, que pode mobilizar opiniões apaixonadas de um lado ou de outro. A resposta afirmativa não se aplica ao fotojornalismo, que precisa se ancorar no texto-legenda para explicar as circunstâncias em que uma fotografia é feita. Trata-se do modo de produção da notícia. Normalmente a imagem funciona como uma informação que complementa, enriquece e dá cor ao texto. Se for uma grande imagem, tanto melhor.






FLÁVIO FLORIDO / FOLHA IMAGEM

A foto que ganhou a página principal da Folha (8/4), obra e graça do fotógrafo Flávio Florido, traz um belo rosto feminino, com a legenda: ‘Comissária de bordo chora em manifestação de funcionários no Rio em defesa da Varig’. Nos olhos da funcionária, a mais funda expressão de angústia. Solitária, discreta, implacável, vê-se uma furtiva lágrima. O detalhe da mão que tenta ocultar o pranto confere maior dramaticidade ao instante. Depois de merecer uma série de análises burocráticas por parte da imprensa, a crise da Varig ganha enfim uma tradução mais humana.


História a contar


E é o lado de quem deve sofrer na pele as conseqüências do horror econômico, com todo o sofrimento que um processo de demissão acarreta, que tem ficado de fora das frias estatísticas sobre o mau momento da empresa aérea símbolo do Brasil. Tem sido praxe mostrar nas matérias a insatisfação dos passageiros com os sucessivos cancelamentos de vôos, atrasos enervantes e o costumeiro overbooking. Trata-se de um serviço de utilidade pública inerente ao jornalismo, tem que ser prestado. O outro lado do tripé da crise traz os administradores da empresa na desabalada tentativa de obter socorro do governo para fechar as contas. E se justificando perante a opinião pública de que tudo vai dar certo, se a Varig agüentar até o início da temporada de alta estação. Mas e a terceira parte dessa história? Exatamente a dos funcionários que fazem a empresa?


Não seria hora de vencer a frieza dos números e revelar os dramas humanos daqueles que têm feito a Varig? Esse papel humanizador e humanizante é o que cabe ao jornalismo. Por trás da estratégia de revelar apenas números, índices e demonstrativos de performances, há narrativas de vida, de dedicação, de vitórias e frustrações, de sangue, suor e lágrimas. Casos, enfim, que os leitores adorariam conhecer e com os quais certamente se identificariam. Isso é o que faz falta, isso é o que ajuda a redimir a linguagem impessoal e as pautas esterilizantes da grande imprensa. Está aí todo um livro aberto à espera do editor atilado, do repórter à cata da notícia quente que emocione o leitor.


Lembrando que, no Brasil, o drama da Varig não é o primeiro. Há o precedente da Panair do Brasil, que teve seus direitos surrupiados de uma hora para outra pelo regime militar, levando ao desemprego imediato dos seus funcionários. Como no caso da Varig, houve protestos, passeatas, tudo dentro de um contexto de duras repressões às liberdades individuais. A Panair foi à lona, o que pode ocorrer com a Varig. Eis a chance de a imprensa contar direito essa história, sem privilegiar em demasia apenas o lado do grande capital.


Sobre o caso Varig, um pungente artigo foi publicado no site No Mínimo (7/4) por Ricardo Kotscho, que este observador toma a liberdade de reproduzir abaixo:




Como salvar a Varig?


‘Obrigado por seguirem confiando e apostando na gente. Torçam por nós’, pediram aos passageiros as aeromoças do vôo da Varig que chegou ao Rio, vindo de São Paulo, às sete horas da manhã de quarta-feira, segundo nota publicada na coluna do Ancelmo Gois, em O Globo.


Virou rotina nessas últimas semanas. A crise da empresa que já foi o maior símbolo da aviação comercial brasileira está levando seus funcionários, incluindo os pilotos, a fazer patéticos pedidos de solidariedade diretamente aos passageiros para que possam continuar voando.


Para quem tem mais de 50 anos, a dramática situação da Varig não representa simplesmente a ameaça de fechamento de mais uma empresa qualquer, como tantas outras que a cada dia baixam suas portas para sempre em nosso país enquanto outras são abertas. Mais do que uma companhia aérea, a Varig era uma extensão do Brasil no exterior.


Só quem já viveu fora do país pode ter idéia de como seus escritórios no exterior – chegaram a ser 111 nos anos 70 do século passado – eram os salvadores da pátria na hora em que batia a saudade de notícias do Brasil.


Ali a gente sempre encontrava não só jornais e revistas, mas também amigos para espantar o banzo, e um alegre burburinho que nos fazia lembrar um boteco nativo. Em viagens a passeio para o exterior, a gente tinha duas alegrias: uma, logo ao embarcar, quando o serviço de bordo já era prenúncio de festa que nos fazia pensar em algum fino restaurante francês; outra, na hora de voltar, pois só de entrar num avião da Varig a gente já se sentia de novo no Brasil.


Dava orgulho de ver a bandeira brasileira na fuselagem dos seus barulhentos Boeing 707 estacionados mundo afora e de ouvir passageiros de outros países elogiando a nossa Varig, sempre comparada às melhores empresas do mundo. Depois, quando vieram os DC-10, aí então parecia que a gente era de primeiro mundo.


De uns dez anos para cá, sei lá, virou uma novela mexicana a história bonita que era a saga de uma pequena empresa regional gaúcha fundada pelo alemão Otto Meyer e que conquistou respeito no mundo da aviação.


Até atingir sua atual dívida de 10 bilhões de reais, a Varig não parou de demitir funcionários e devolver aviões, uma tragédia de má gestão empresarial bem contada pela ‘Exame’ em sua edição de 23 de março, sob o título ‘Caviar e contratos milionários’.


Nesta reportagem, a revista conta a que ponto chegou a bagunça gerencial da empresa, que gasta 6 milhões de reais por ano só em caviar (oferecido no câmbio negro à grã-finagem carioca por módicos 90 reais a latinha) enquanto atrasa o salário de seus 11 mil funcionários, freqüentemente ainda por cima humilhados por passageiros irados quando seus vôos atrasam ou simplesmente são cancelados, como vem se tornado rotina.


Se, para os passageiros, a velha Varig significa muito mais do que apenas um meio de transporte aéreo, para seus funcionários, que sempre vestiram com muita garra a camisa da empresa, a luta pela sua sobrevivência vai além da manutenção de um emprego com carteira assinada. Seu possível fechamento, tenho certeza, representará a perda de um bom pedaço da vida de cada um.


Como não sou especialista em gestão de empresas aéreas nem em qualquer outra coisa, não sei explicar os motivos que levaram a essa situação nem apontar quem seriam os culpados por isso. Mero cronista do cotidiano, eu me limito a registrar fatos que por algum motivo me deixam alegre ou triste, e podem eventualmente interessar aos leitores.


No caso da Varig, me dá uma tristeza danada de ver o que aconteceu, mas não sei também qual é a solução. Nos jornais desta quinta-feira em que escrevo a coluna, já se especula que seus aviões podem não levantar mais vôo nos próximos dias, até por falta de combustível.


Sei apenas que alguma coisa precisa ser feita para salvar uma empresa que foi fundada há quase 80 anos e esteve presente em momentos importantes da vida de cada um de nós, e não só nas conquistas das copas do mundo.


Sem procuração de ninguém, faço aqui um humilde apelo em nome de passageiros e funcionários aos meus amigos do governo, grandes empresários nacionais e bancos em geral: a Varig não pode morrer.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias