Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A face real da paranóia

O presente texto é desdobramento de outro artigo (‘A paranóia fake continua‘, publicado neste Observatório). Como tal, algumas questões a se fazerem presentes neste exercício de reflexão dialogam, complementarmente, com as pontuações da escrita anterior.

Com o domínio de um modelo cultural centrado na ‘midiatização’, duas estéticas, desde o início dos anos 1970, entraram em confronto: 1) a estética do sentido; e 2) a estética do devaneio. A rigor, trata-se de dois olhares sobre as coisas do mundo. Enquanto a primeira acena para a provocação quanto ao que temos de descobrir sob o manto da realidade, a segunda oferece um olhar sobre o que coberto está por um véu. A partir daí, cada cidadão está livre (será?) para se indagar: o que eu quero ver? Quero ver o que se esconde por debaixo do manto, ou opto por ver o que me oferecem recoberto por um véu?

Nessa escolha, define-se uma ou outra consciência, caso se manifeste a pergunta. A diferença reside num aspecto: quantos foram educados para, sequer, terem direito à escolha? Não é por outra razão que o sistema midiático opera muito bem essa tensão. A mídia se alimenta da oscilação: a) mostra sem revelar; b) o que exibe se dá por recortes. A quem está na recepção cabe o dever de desfazer a tensão, sob pena de tornar-se refém das duas.

A Copa do Mundo, como um dos maiores eventos, envolve altíssimos investimentos, seja no âmbito do capital público, seja no tocante a capital privado. Se algum tem de perder, perde o capital público. Quem paga o gasto deste é cada cidadão, em seu respectivo país. Todavia, quem gasta na rede privativa quer, na pior das hipóteses, a aplicação de volta e, se possível, com margem de lucro.

Adidas x Nike ou Adidas x Puma

Seguindo o rastro dessa lógica banal, Copa do Mundo existe para sugar altos montantes do capital público para fazê-lo migrar a um amplo espectro de cofres privados. A estética do devaneio não quer saber dessa trama. Aos adeptos dela, importa apenas o que se dá nas quatro linhas e nem de longe imaginar o que se decide fora delas. Indústrias de material esportivo e de bebidas (cervejas e refrigerantes), ao lado do sistema midiático (impresso e eletrônico), comandam o espetáculo para um público mundial em torno de dois a três bilhões de receptores.

Pois é. Uma vez mais, ruas pintadas de verde/amarelo e pessoas recobertas de tecidos em verde/amarelo, afora redes do comércio com portas cerradas nos horários dos jogos da ‘seleção canarinho’ foram o cenário, reduplicado por telas e telões espalhados por todas as grandes cidades brasileiras para a catarse coletiva. Manchetes, no melhor estilo da estética do devaneio, não faltaram: ‘Agora é hora de laranja virar bagaço’; ‘Feijoada combina com laranja’. A realidade, atrelada à estética do sentido, porém, demonstrou que o ‘bagaço da laranja’ tinha mais sabor (saber?) que a feijoada. Como resultado: nada além de um ‘sorriso amarelo’, em consonância com todos que, nas verdes quatro linhas, ‘amarelaram’: Triste fim de Policarpo Quaresma e O escrivão Isaías Caminha são duas preciosas criações ficcionais de Lima Barreto. Com elas, pelo visto, o cidadão brasileiro ainda nada aprendeu. Em lugar de debruçar seus olhos em páginas construtivas, no melhor estilo da ‘estética do sentido’, o cidadão brasileiro prefere deslizar o olhar em imagens que se sucedem numa velocidade que a consciência não retém. Ou seja, ele fez a opção por apelos sensoriais, estimulados por telas, telinhas e telões. Enquanto um gasta e se perde em sua alegria fugaz, outro ganha (e muito) dinheiro.

Por fim, a Copa chega à sua reta final. Quaisquer que sejam os resultados das semifinais, a final terá de ser entre Adidas x Nike, ou Adidas x Puma. As marcas estão muito bem distribuídas, como sempre: Alemanha e Espanha (Adidas); Holanda e Uruguai (Nike x Puma). Em caso de a final ser Alemanha (ou Espanha) x Uruguai, a Alemanha será, uma vez mais, a vencedora das marcas, já que Adidas e Puma (final da Copa de 2006), como todos bem o sabem, são indústrias que nasceram de uma dissidência entre irmãos sócio-fundadores da Adidas.

A volta dos colonialistas como vitoriosos

Como é próprio na história das Copas, esta não fugiu à regra. Qual? Arbitragens manipuladoras de resultados. A Alemanha, a despeito de sua pujança nas quatro linhas, foi beneficiada no jogo contra a Inglaterra. A Holanda foi favorecida pelo pênalti não marcado em Kaká. A Espanha foi contemplada em dois fatos: 1) o gol do Paraguai (legítimo… mas não legal); 2) o pênalti marcado a favor da seleção paraguaia (e perdido pelo atacante Cardoso) teve flagrante invasão da área por defensores espanhóis. Contudo, o juiz não mandou repetir, procedimento que, minuto após, adotou na marcação de um pênalti a favor da Espanha.

Sim, é verdade que a cobrança fora bem-sucedida e invalidou-a. Na segunda cobrança, o goleiro defendeu. Onde está a manipulação? Na diferença de critérios do juiz da Guatemala (país, aliás, pródigo e expoente no cenário futebolístico mundial… Só rindo). Volto a insistir: a marca vencedora na Copa de 2006 foi a Puma. Nesta, será a Adidas. Vale dizer, portanto, que a vencedora será Alemanha ou Espanha.

Desde a Copa de 90, marca nenhuma ostenta duas vitórias seguidas, bem como, desde 1962, nenhuma seleção vence duas Copas consecutivamente. Agora, então, resta assistir ao desenrolar de cartas já marcadas.

Na condição de cidadão sul-americano, muito me agradaria uma vitória da seleção uruguaia. Assim, porém, não será. A propósito, salvo engano, há muito tempo, não se viam quatro seleções sul-americanas nas quartas de final. Pois bem, três delas tiveram de retornar. Outro detalhe, no mínimo curioso, diz respeito ao fato de, numa Copa realizada no continente africano, a vencedora vir a ser uma seleção europeia. Sabidamente, foram os europeus que invadiram, escravizaram e colonizaram a África.

A Fifa, entidade europeia, faz seu ‘jogo de cena’, abrindo os jogos com a mensagem ‘Say no to racism’. Sem dúvida, a mensagem há de ser reforçada por todos os recantos do mundo, pois nada é mais aviltante que o racismo. Apenas pretendo registrar o quanto me soa mal este fato: exatamente no palco em que europeus promoveram atrocidades, a ele retornem para se afirmarem como vitoriosos. [Este artigo foi finalizado em 04/07/10 e remetido ao OI na mesma data, às 20h33; portanto, bem antes de se iniciar a fase semifinal.]

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha (RJ)