Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A farsa e o farsante

A mídia é o juiz. Bota na cadeia. Sai atrás de bandido, ou quase bandido. Julga e condena. Eis a Globo na reta mais uma vez. Desta vez, o Fantástico – aquela ‘revista eletrônica’ que se preocupa com os artistas da Globo, as modelos da Globo, as novelas da Globo e as bobagens que existem no mundo. Também se preocupa com o sensacional: pode ser a viagem turística do nosso astronauta brasileiro ou a liberdade de Suzane von Richthofen. No primeiro caso, eis o homem-espetáculo, nacionalista, católico, parece partida de futebol – dá audiência. No segundo, a garota bonita, rica, que mata o pai, dá muita audiência.

A questão que interessa ao jornalismo e ao bom jornalista é: por que a TV Globo foi procurar Suzane para um ‘encontro’ ou ‘entrevista’? Para ouvir sua opinião, ou para – refletindo a moral católica nacional – mostrar que ela deveria estar na cadeia devido ao parricídio, crime que abala os paradigmas da família cristã?

Primeira volta no tempo… Antes da Globo existia a Record. Há pouco tempo, matéria na emissora dos bispos – apresentada por Paulo Henrique Amorim – foi colocada nestes termos: ‘Nossos repórteres passaram sete meses investigando, até localizarem Suzane’. Mas, perguntaria o incrédulo, por que procuram Suzane? Ela está foragida? Ela matou mais um? Ela está burlando a Justiça? Não. É porque a TV quer sangue. Porque a TV julgou e condenou antes.

Circo de sangue

A mídia, esta mídia, dissemina o barbarismo humano, os tempos da caverna, quando era olho por olho na terra dos cegos e banguelas. E o sensacional, claro. Sempre. A melhor notícia é esta: moça rica mata pais com ajuda dos namorados. Ou esta outra: caso de amor termina em massacre na casa dos ricos. Sangue na mídia sempre vende. E é fácil fazer. Suzane é matéria pronta para essa mídia. Nem precisa editor.

Segunda volta no tempo: quando soltam a assassina. Pois é, a justiça mandou soltar. A imprensa, esta que preza a ‘liberdade de expressão’, estava lá, com suas câmeras, seus microfones sujos de sangue. E se não tem sangue, inventamos o sangue. Na véspera ela avisou ao povo brasileiro: olha lá, a assassina vai ser solta! E o povo faminto de sangue foi lá, fez platéia. E gritou: assassina! Como a mídia queria. O ódio é coletivo. A imprensa julgara: por que deixam em liberdade uma assassina? Vamos botá-la na cadeia.

Terceira volta no tempo: quando Suzane nasceu. Tinha sido assim antes. Quando foi feita a reconstituição. Graças ao poder de mobilização da mídia, homens, mulheres e crianças (sim, muitas crianças, estavam lá), gritando assassina, assassina! Toda essa gente, como se vê, se viu na pele da mídia e pediu sua morte. Mais um pouco e a linchavam.

A nova pergunta é: o que leva as pessoas a saírem de casa e se unirem numa platéia que berra de ódio contra alguém que nunca viram antes na vida? O ódio foi colocado para essa gente, claro. Antes elas não tinham ódio de Suzane – agora, graças a mídia, todos nós queremos sua morte. Este jeito de lidar com a violência é típico do jornalismo policialesco. Eis a violência enquanto espetáculo. O circo de sangue foi montado. No centro do picadeiro, a bestialidade humana. E sangue. O sangue em garrafas de cristal ou numa pet de coca-cola vazia. Não importa – sangue é sangue; sangue vende.

Propagando a violência

Este jornalismo não busca resolver nada, esclarecer nada, explicar nada – ele é apenas a emoção do sangue que jorra. Por que Suzane Richthofen ajudou a matar os pais? Esta é a pergunta básica. E não foi respondida até hoje. Na verdade, não interessa a esta mídia. Em contrapartida, ela se interessou em mostrar como Suzane participou do crime. Sabemos disto em detalhes. Incluindo o vídeo da polícia. Dá audiência. Mexe com a bestialidade, o primitivo no humano.

O jornalismo policialesco tem várias versões. Uma delas é o Linha Direta – quando a emissora parece manter uma certa distância do crime, e apresenta-o como uma novelinha. Uma novelinha que confunde o real com a ficção. E a tal ponto que a Globo virou uma caça-bandidos. É uma solução requintada.

Uma outra versão, mas comum, para jornalismo policial é a do apresentador bravo disparando adjetivos sobre os acusados, acompanhando o Boletim de Ocorrências Policiais. Critica a omissão das ‘autoridades’ e pede mais dureza com os ‘bandidos’. Um programa como este é apenas um propagador da violência (em tempo, a campanha contra a baixaria na TV tem estudo sobre os programas policialescos, disponível aqui).

‘Do que ela sorri?’

Os repórteres que atuam com o tema da violência, regra geral, contam o caso a partir da versão da polícia. Então, entrevista o policial, a vítima ou parente da vítima; e, ouvidas as acusações, por fim, o acusado tem direito a se manifestar, mas já é tratado como bandido. Como é um espetáculo, o repórter precisa botar emoção. Mas, e se o ‘bandido’ não quer falar? Ou fala por monossílabos? É normal. Ora, o enquadramento é aplicado e o repórter vai tentar mostrar o que o ‘bandido’ está sentindo. A coisa é meio subjetiva, mas objetividade não é o forte deste tipo de jornalismo. Ora, se o ‘bandido’ está tranqüilo, é apresentado como frio e calculista; se chora, chora lágrimas de crocodilo; se sorri um pouco, é um sádico. Em 90% dos casos o enquadramento revela que ele é um sujeito insensível. Apresentado como tal pela TV, cabe ao telespectador o julgamento previsível – o linchamento do monstro.

Suzane Richthofen foi submetida a este pré-julgamento. Primeiro, quando se constatou que ela participara do enterro dos pais. Confirmada como autora intelectual do crime, a TV mostrou-a várias vezes chorando – Falsa! Hipócrita! – no evento.

Ela foi presa. Depois colocada em liberdade pela Justiça. Não sabia que a mídia estava no seu encalço. Não sabia que era foragida da mídia – a caçadora de criminosos. A Record demorou sete meses de ‘investigação’ para localizá-la. A ‘criminosa’ estava livre e solta. Isto é um crime para mídia. As imagens da Record, obtidas de forma oculta, mostravam o pior. Ela estava tomando sorvete, tomando banho de praia! E, pasme, caro telespectador, ela sorri! Como? Sorri! Como alguém que ajudou a matar outra pessoa, seus pais, pode sorrir?! Um patético Paulo Henrique Amorim, do alto do seu espírito justiceiro moralista, à medida que as imagens mostravam Suzane, perguntava ao telespectador: do que ela sorri? É evidente que ele não admitia que ela sorrisse. A pergunta que se faz depois deste espetáculo, porém é: isto é jornalismo? Invadir a privacidade de uma pessoa que aguarda julgamento, depois questionar o que ela sente, é jornalismo? Condená-la por sorrir é jornalismo?

Uma falsa

Tudo isso remete a um clássico da literatura, O estrangeiro, de Albert Camus. No romance, o personagem central se envolve num conflito bobo na praia e acaba por matar outro homem. Preso e submetido a julgamento lhe perguntam por que cometeu o crime. Ele responde: por causa do calor. Mas os jurados só o condenam à morte ao constatarem sua insensibilidade quando, dias antes, ele esteve no enterro da mãe e não mostrou nenhum sinal de dor – e então os jurados tiveram certeza de que estava ali um monstro que deveria morrer. Não havendo pena de morte no Brasil a mídia, defensora da tradição, família e propriedade, quer pelo menos a prisão perpétua para Suzane.

O caso do Fantástico de domingo (9/4/06) nos remete a tudo isso. A emissora fez uma matéria que não é matéria. Talvez Suzane e seus advogados pensassem em aproveitar o momento para mostrar que Suzane não era o monstro que pintavam, que ela estava sentida com a morte dos pais, rompida com os antigos namorados. E, naturalmente, a orientaram sobre como agir. Não levaram em conta, porém, o interesse pelo espetáculo do sangue.

A matéria da Globo caiu quando ela nada disse, nada falou. Mas aí alguém percebe que houve uma ‘farsa’. E começa a juntar os pedacinhos. A repórter da Globo diz: ela chorou sem mostrar lágrimas. O advogado cochichou no seu ouvido. Ela olha para Barni várias vezes… Enfim, Suzane é uma falsa. E a nova matéria mostra que ‘tudo uma era farsa montada por ela e seus advogados’.

Sempre um perigo

No dia seguinte, segunda-feira, um juiz manda prendê-la alegando risco de vida para o irmão; a OAB anuncia a abertura de um processo na comissão de ética. E assim, graças à Globo, a menina rica que matou os pais volta para cadeia. A emissora cumpriu seu papel de justiceira, fazendo com que o poder público atuasse com severidade e botasse nas grades a assassina. Todos os jornais repercutiram a matéria. A Globo foi longe: além de Suzane, foi aberto processo contra Barni e os advogados que a instruíram na matéria da Globo. O que era um crime entre milhares neste país ocupa todos os jornais. A Globo venceu.

Do ponto de vista do jornalismo, o que houve foi uma derrota. Sair atrás do espetáculo e do círculo de sangue nunca foi bom jornalismo. Tampouco julgar e condenar as pessoas. Isto não é jornalismo. Finalmente, a matéria da Globo foi feita sem avaliar os efeitos disso sobre a ré, seus parentes, amigos, advogados. Todos agora foram incluídos no rol de criminosos.

O jornalismo deveria pensar neste mau exemplo dado pela Globo. É evidente que a justiça erra. E erra muito. Mas a grande mídia, que é competente em censurar os grandes casos de omissão ou acobertamento da Justiça, achou neste caso que a Justiça errou em deixá-la solta. A imprensa se juntou ao mais reles sentimento humano – o do sanguinarismo – e exigiu que a Justiça botasse na cadeia essa moça.

O caso Suzane lembra o caso da Escola base, o que mostra que a grande mídia não aprende. E que, na dúvida, opta pelo sangue. Mas o caso nos remete a outra indagação. Qual deve ser a punição para Suzane? A Justiça tem lá sua tabela de punições para criminosos. E, constando que não causa perigo a outros, permite que a pessoa aguarde o julgamento em liberdade. A TV considera que ela será sempre um perigo. Ela não pode ficar em liberdade. E fim.

A vigarista e a miss Brasil

O caso não acabou. E se, submetida a julgamento, ela pega uma pena que não seja a máxima? Muito provavelmente esta imprensa de sangue criticará a justiça. Na verdade, quando do julgamento, os jurados serão devidamente orientados pela imprensa para que não sejam complacentes com esta parricida. Neste momento vale refletir sobre o sentido da punição. As penas foram instituídas como punição ao criminoso pelo crime cometido. O espírito da lei preza que a privação da liberdade ou de bens se fará para a expiação da culpa. É a sua punição. Mas isto não parece ser o bastante para a imprensa. E aplicam uma nova pena sobre criminosos especiais como Suzane – o linchamento público e a invasão da privacidade –, ou cobram do Estado mais rigor do que a lei estabelece.

Este caso deveria ser estudado em todas as escolas de Comunicação do país. Para que os jovens soubessem a diferença entre o papel da imprensa e a função do espetáculo, e a diferença entre as duas coisas. Para que apreendessem que a boa imprensa pode cobrar justiça, mas ela não pode fazer justiça – e, muito menos esta imprensa de cima para baixo – decidir sobre o que é justiça e instigar as pessoas a agirem sob este falso conceito.

Na terça, dia 11, às 18h30, Suzane voltou ao presídio em São Paulo. Uma equipe da TV Bandeirantes acompanhou o percurso da delegacia ao presídio. Ao vivo. Luís Datena, em seu programa Brasil urgente, festejava a prisão alegando que não basta a justiça, existe também a moral. E a moral determinava que ela ficasse na cadeia. Feito o julgamento, de ‘alma lavada’, concluiu: vigarista! E foi entrevistar a nova miss Brasil, ao lado, dividindo a tela com a porta do presídio.

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Jornalista, escritor, autor do livro Trilha apaixonada das rádios comunitárias, diretor do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal