Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A imprensa não tem mandato para governar

O jornalismo emergiu na modernidade e se consolidou na contemporaneidade como uma nova modalidade de saber. Um conhecimento voltado para a atualidade em uma sociedade cada vez mais complexa. A sociedade produziu este novo saber para que os cidadãos, ambientados adequadamente na circunstância atual, possam atuar em plenitude na vida societária. Assim, a legitimidade do jornalismo deriva de sua capacidade de informar, analisar e criticar de modo rigoroso os acontecimentos e os processos que conformam a atualidade desta sociedade. Nesta perspectiva, o jornalismo é uma modalidade de saber inerente e imprescindível ao mundo moderno e contemporâneo.

Em uma sociedade democrática, o jornalismo tem uma tarefa altamente relevante. Colocar em debate e discutir os grandes temas, ouvindo as mais diferentes opiniões políticas e segmentos sociais, ajudando a construir uma opinião pública sobre os assuntos mais significativos da vida social. Esta contribuição do jornalismo é vital para a democracia, assim como sua vigilância cidadã contra qualquer forma de opressão, seja ela proveniente de agentes de governos, do mercado ou da sociedade civil.

Uma receita mágica

Quando se afasta desta atitude, socialmente reconhecida e legitimada, o jornalismo corre grave perigo e perde sua precípua função na sociedade. Ele se contamina por interesses contrapostos aos públicos, passa a ser um mero instrumento ideológico e perde sua legitimidade social.

A situação atual jornalismo brasileiro é preocupante neste sentido. Tome-se, por exemplo, a recente cobertura do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Por óbvio, a mídia tem de noticiar o plano, discutir a consistência das medidas propostas etc. Isto é fundamental para que possamos ter uma opinião sobre o PAC, para cobrar do governo políticas públicas qualificadas e para que medidas inscritas no plano possam ser corrigidas e melhoradas.

No entanto, não é exatamente isto que se vê em muitas coberturas jornalísticas. Nelas predomina, de modo simplório, a cobrança e a exigência que certas medidas sejam obrigatoriamente implementadas. Medidas exaustivamente repetidas como uma receita mágica para solucionar todos os problemas sociais em todos os países. Em verdade, medidas desde sempre preconizadas pelo receituário neoliberal, que já mostrou, em muitos países, sua incapacidade de promover um efetivo e justo desenvolvimento.

Informar e criticar, sim

Mas o problema de tais coberturas não é o de fazer a crítica ao PAC a partir desse imaginário neoliberal, já abandonado em muitos países por seus resultados desastrosos, pois tal atitude, apesar de politicamente equivocada, não o é em termos estritos de atuação da imprensa. Ela tem e deve ter liberdade para o debate e a crítica.

O problema maior é o caráter unilateral assumido pela cobertura ao não ouvir as variadas opiniões existentes sobre o tema e, principalmente, a tentativa de impor algumas medidas como obrigatórias para as políticas do governo federal. Afinal, do programa de Lula – eleito por esmagadora maioria, com mais de 60% dos votos válidos – não constam, por exemplo, nem a reforma da previdência, nem a redução dos gastos públicos. Querer constranger e obrigar o governo a assumir tais medidas, por certo, extrapola em muito a legitima função da imprensa. Informar, analisar e criticar, sim, mas não tentar governar. E pior, contra a vontade expressa da maioria da população. A imprensa não tem e nem pode ter mandato para governar.

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Professor da Universidade Federal da Bahia, coordenador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura e pesquisador do CNPq