Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A indefensável tese do ministro da Defesa

Um ministro bom moço, gestos moderados, descendente de nobres, título de doutor em Direito, bons índices de popularidade. Karl-Theodor zu Guttenberg está à frente do Ministério alemão da Defesa desde outubro de 2009 e aparece no cenário atual como possível sucessor de Angela Merkel no cargo de chanceler. Originário do estado da Baviera, pertence ao partido cristão de direita CSU. Sua grande tarefa diante da opinião pública é tornar palatável a presença de tropas alemãs no Afeganistão, o que já dura dez anos. No entanto, foi por um motivo bem menos bélico que a foto do ministro ocupou a primeira página de todos os grandes jornais alemães nesta semana.

Uma investigação levada a cabo pelo professor da Universidade de Bremen Andreas Fischer-Lescano revelou que a tese de doutorado de autoria do Ministro da Defesa é em verdade um bem costurado plágio. Das 475 páginas do trabalho, pelo menos 240 são cópias descaradas de trechos de artigos científicos, jornais, de trabalhos universitários disponíveis na internet ou ainda de documentos do Departamento Nacional de Pesquisa sem a devida autorização. A informação desencadeou grande crise política, dando à oposição a chance de fazer pressão e pedir a renúncia do ministro. O posto, por enquanto, está mantido, mas o título de doutor foi cancelado.

Apresentada em 2009 ao Departamento de Direito Internacional da Universidade de Bayreuth, a tese obteve nota máxima, suma cum laude, o que no Brasil equivale à menção ‘com distinção e louvor’. Sob o título ‘Constituição e tratado constitucional: desenvolvimentos constitucionais nos EUA e na UE’, o texto convenceu os especialistas e autorizou seu autor, como é hábito no país, a incluir as iniciais ‘Dr.’ na própria assinatura.

Plágio é desrespeito e má-fé

Zu Guttenberg, diante das acusações, prestou um esclarecimento público nada convincente. Leu em voz titubeante, diante das câmeras, uma mensagem dizendo que sua tese teria, infelizmente, ‘muitos erros’, mas que ele estaria pronto a corrigi-los e que, devido ao estresse da vida pública, teria ‘esquecido’ de citar várias fontes e colocar notas de rodapé. Como ele próprio não soube se defender, a chanceler Angela Merkel (aliás, doutora em Física) veio em seu socorro e declarou em comunicado oficial: ‘Continuo mantendo plena confiança em sua função e é como ministro da Defesa que o país precisa dele.’ Em seguida, a Federação Alemã de Jornalistas publicou uma nota criticando a relação de Zu Guttenberg com a mídia: ‘É inaceitável que o ministro queira nos convencer com a leitura em voz alta dessas anotações, em vez de responder com franqueza às nossas perguntas.’

A grande surpresa, neste caso, não é o mau comportamento do ministro, mas a reação confusa da imprensa e da opinião pública. De início, grande alarde. Depois, suavidade. A tentativa de passar a borracha já tem surtido efeitos em alguns meios de comunicação que, por ora, preferem desviar-se do tema. A questão está, assim, levemente abafada, sob o pretexto de que o ministro tem ‘assuntos mais importantes para tratar’. Esse ponto de vista é compartilhado e difundido principalmente pelos telejornais de maior audiência nacional, o Tagesschau e o Heute Journal, ambos de canais estatais. Tais ‘assuntos importantes’, sempre entre aspas, são, de acordo com esses canais, as intervenções militares no Afeganistão e morte recente de três soldados em território afegão.

Tema muito incômodo, de fato, pois essa imprensa mistura dois pesos e duas medidas. Desde quando honestidade acadêmica é menos importante do que honestidade militar? Ou será possível uma honestidade pela metade, localizada, aplicada somente em certos setores da vida? Multiplicam-se as declarações tentando relativizar a culpa de Zu Guttenberg e o apoio vem não só da chanceler, mas de seu partido, que ainda acredita ser possível investir em seu potencial para a sucessão. Pouco a pouco, o caso da tese se reduz para a dimensão de problema pessoal, quando na verdade é de interesse público. A oposição, por sua vez, não considera a batalha como perdida e mantém a convicção de que o plágio acadêmico do ministro não é mera mancha curricular, mas desrespeito à população e uso de má-fé para com a Universidade e com as instituições públicas que o respaldaram até agora.

Autoria vive momento de instabilidade

Aqui cabe a ressalva: entre políticos alemães, portar e exibir um título de doutor é quase regra, enquanto no Brasil a porcentagem dos eleitos que alcançam o nível superior é ínfima, sem falar dos que mal completam a alfabetização. Sabemos que a educação universitária é um bem e um direito do cidadão, mas que, igualmente, nunca foi prova de bom caráter, honestidade ou competência. Os diplomas, relembrando o sociólogo Bourdieu, têm servido, infelizmente, apenas como fator de distinção social e intelectual, mostrando – num mundo de potencialmente iguais – que uns são mais iguais do que outros.

Não seria nada mau aproveitar a deixa e começar um movimento de moralização acadêmica, o que nada tem a ver com a supervalorização da autoria ou do autor. No Brasil, nesta mesma semana e por motivo de plágio, um professor do departamento de Farmácia da USP de Ribeirão Preto foi demitido e uma pesquisadora foi destituída de seu título de doutora. Com a expansão das redes de informação, a autoria vive um momento de grande instabilidade e é possível que esteja agonizando seus últimos dias. Ainda assim, é aconselhável que cientistas (e também jornalistas) não deixem nunca de citar a fonte.

Sites relacionados:

Ministério Alemão da Defesa – Bundesministerium der Verteidigung (em alemão)

Federação Alemã de Jornalistas – Deutscher Journalisten-Verband

Tagesschau, da emissora estatal ARD

Heute Journal, da emissora estatal ZDF

Der Spiegel, revista semanal

******

Jornalista, doutora em Ciências da Comunicação e tradutora