Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A Índia, o Brasil e a ‘ilusão objetiva’

Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia (1998), em argumentação muito interessante em seu mais recente livro, The Idea of Justice (A ideia de Justiça, 2009, não publicado no Brasil) [Amartya Sen, The Idea of Justice, The Belknap Press of Harvard University Press, cap. 7], retoma a ideia de ‘ilusão objetiva’, avançada por Karl Marx (1818-1883) em alguns de seus manuscritos filosóficos e econômicos para caracterizar o enviesamento de algumas percepções correntes na sociedade indiana. O arrazoado é arrebatador.

Ele demonstra, primeiramente, que em Kerala, o estado que tem a maior expectativa de vida a partir do nascimento dentre os estados indianos – ultrapassando, inclusive, a da China e aproximando-se à europeia – tem também as mais altas taxas de morbidade referida (ou auto-declarada) do país. Já estados como Bihar ou Uttar Padresh, que têm uma expectativa de vida bastante baixa, contam também com uma taxa baixíssima de morbidade referida. Ora, um exame apressado tenderia a analisar as taxas de morbidade auto-declaradas como efeitos de mero subjetivismo, ou erros acidentais de pesquisa, uma vez que, na realidade, em Kerala se vive bastante, o que tornaria problemática a ideia da alta incidência de doenças entre a população. Nesse ponto, assevera Amartya Sen, a noção de ‘ilusão objetiva’ pode ajudar.

Como argumenta o economista, Kerala também é o estado com as mais altas taxas de alfabetização (incluindo alfabetização feminina) indianas e tem um dos mais extensivos sistemas de saúde pública. Portanto, prossegue, em Kerala há uma consciência muito maior da possibilidade de ficar doente e da necessidade de procurar ajuda médica para tratar-se. Ou seja, as próprias ideias e ações que ajudaram a diminuir a mortalidade nesse estado ajudaram, também, a apurar a percepção das pessoas em relação às enfermidades (reais ou possíveis). Já em Bihar e Uttar Padresh, estados com baixas taxas de alfabetização e mal servidos de serviços públicos de saúde, a população tem menores possibilidades de perceber os distúrbios que os acometem e cercam.

O discurso da ‘democracia racial’

Assim, Sen demonstra que a ilusão da baixa morbidade em estados socialmente subdesenvolvidos (socially backward states) na Índia tem, de fato, uma base objetiva – uma base posicionalmente objetiva (positionally objective basis). Resta claro, para ele (e para mim), que cientistas sociais dificilmente poderiam caracterizar essas percepções como ‘caprichosas e subjetivas’, ainda que incorretas; isto nos leva à questão: em que essa constatação se relaciona com o Brasil?

Vivemos, durante muito tempo, sob a égide do pensamento estruturante de ‘democracia racial’. Ainda hoje, diz Ali Kamel, diretor de jornalismo da maior rede de televisão nacional [Ali Kamel, Não somos racistas, Editora Nova Fronteira, p. 40]: ‘[…] Acredito que majoritariamente ainda somos uma nação que acredita nas virtudes da nossa miscigenação, da convivência harmoniosa entre todas as cores e nas vantagens, imensas vantagens, de sermos um país em que os racistas, quando existem, envergonham-se do próprio racismo’ (grifo meu). Demóstenes Torres, senador pelo DEM e presidente de uma das comissões mais importantes do Senado, a Comissão de Constituição e Justiça, ecoa o mesmo discurso [artigo de Demóstenes Torres publicado no Globo (12/03/10), ‘Raça e Ira‘, reproduzido no blog de Reinaldo Azevedo. E minha resposta, publicada neste Observatório; ou, eu diria, a mesma ‘ilusão objetiva’.

Que base sustenta a inexistência de racismo?

Vejam, se a pobreza é, como diz Kamel, ‘a chaga renitente do Brasil’ – e a pobreza não escolher cor – o que explica o fato de que ‘os níveis educacionais da população preta e parda (para usar a classificação do IBGE) são muito mais baixos do que o da população branca e, quando a educação é semelhante, a situação dos pretos e pardos é pior’ [Simon Schwartzman, entrevista à jornalista Ciça Guedes, de O Globo, sobre o livro As Causas da Pobreza (Rio de Janeiro, FGV, 2004), ver aqui]? Em outra pesquisa iluminadora, e aparentemente negligenciada, a antropóloga Lília Schwarcz também aponta dados emblemáticos: ‘97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito. Mas, ao serem perguntados se conheciam pessoas e situações que revelavam a discriminação racial no país, 98% responderam com um sonoro `sim´. A conclusão informal era que todo brasileiro parece se sentir como uma `ilha de democracia racial´, cercado de racistas por todos os lados’ [Lília Schwarz. Entrevista. ‘Quase pretos, quase brancos’, ver aqui].

Ora, se a ilusão objetiva depende das posições observacionais que os atores ou grupos sociais ocupam, nublando a capacidade de exame para fatos verificáveis após sério escrutínio, fica a questão: qual seria a base objetiva – ainda que profundamente paroquial – que sustenta o gritante desvanecimento da existência de racismo em nosso país?

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Historiador, São Luís, MA