Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A mídia e o gênero policial

O filme Tropa de Elite 2 – Agora o Inimigo é Outro arrecadou R$ 7,3 milhões e levou 687 mil pessoas ao cinema no fim de semana do segundo turno das eleições e já é considerado a segunda produção nacional mais vista na história, atrás apenas de Dona Flor e seus Dois Maridos (R$ 10,7 milhões), segundo matéria da Folha de S.Paulo do dia 2 de novembro. O filme do Coronel Nascimento bateu Garfield 3D – Um Super-herói Animal, e Comer Rezar Amar, filme com Julia Roberts e Javier Bardem.

Sucesso de crítica e de público, Tropa de Elite 2 não chega a inovar do ponto de vista cinematográfico, mas aprofunda de forma inédita uma discussão que já estava presente no documentário de estreia de Padilha, Ônibus 174 – as intrincadas relações da mídia com a legitimação de um sistema penal corrompido pela violência e totalmente articulado com o poder público. Sem a mídia, adverte o antigo capitão Roberto Nascimento, o personagem de Wagner Moura, nada disso seria possível.

Padilha até que pega leve. Se no documentário sobre Sandro, o sobrevivente da chacina da Candelária que sequestrou um ônibus, nenhuma emissora ficava isenta do reality show mais violento da TV brasileira, em Tropa 2 o grande vilão não é a mídia como um todo, mas apenas aquela sensacionalista e popularesca. Não é difícil associar o programa Mira Geral, do filme, ao Balanço Geral, da Record, e o jornal Na Hora com o famoso e truculento pasquim Meia Hora. De fato, é o jornalismo policial, um dos gêneros mais populares do país, o principal apoio da ação policial violenta, destinada a matar sem perguntar. Na estreia em Paulínia, a cena em que Nascimento espanca violentamente um político corrupto foi aplaudida pela plateia.

A crônica policial na tela

De uma certa forma, o capitão – que agora se preocupa com o filho adolescente, com o qual contracena em cenas belíssimas – se reconcilia com o público de classe média e com intelectuais, tornando-se um insuspeito aliado dos movimentos que lutam pelos direitos humanos, personificado pelo personagem Fraga (Irandhir Santos), ao se dar conta de que os traficantes são um problema menor, apenas uma das facetas do sistema. Mas a mídia que se articula com o sistema é tudo, menos isenta. A mídia atua como o principal sustentáculo dessa nova ordem – a da corrupção institucionalizada em sua luta pelo poder político.

Este não é o primeiro filme nacional a abordar a violência policial, a corrupção na política ou o narcotráfico. Mas certamente é o primeiro a tratar a mídia de uma forma tão crítica. Não se trata de uma jornalista que se envolve com alguém ligado ao poder, ou ainda de repórteres que atuam como paladinos da justiça. Insaciáveis, os jornalistas do filme querem a fama rápida e até mesmo cargos no governo. Mas fica claro que faz parte do jogo, não se trata de um desvio pessoal de caráter.

No início do cinema nacional, a crônica policial e a sátira política sempre foram fontes de inspiração e a única possibilidade de contrapartida dos produtores e exibidores brasileiros às produções estrangeiras que dominavam o mercado. A crônica policial alentou as primeiras produções brasileiras de sucesso e os títulos dos filmes praticamente resumiam a crônica policial daquele tempo. Em 1908, supõe-se que tenha surgido o primeiro filme de ficção, Os Estranguladores ou Fé em Deus, baseado em um crime real ocorrido no Rio. Dois adolescentes foram estrangulados por uma quadrilha composta por Gerônimo Pegatto, dono do barco Fé em Deus. A história foi encenada ainda em teatro. A professorinha de São Paulo que anavalhou o noivo na terça-feira de carnaval resultou em Tragédia Paulista, também distribuída com o título Noivado de Sangue (1908). A estória do estrangulador Miguel Trad que esquartejou sua vítima e a despachou dentro da mala originou O Crime da Mala no mesmo período (Salles Gomes, 1980, p. 32).

Os novos seriados policiais

Explorar crimes no cinema em uma época sem televisão parecia ser um filão inesgotável. O que causa espanto hoje é que, teoricamente, temos uma mídia que deveria cumprir esse papel, de revelar a verdade. Dificilmente, sabemos, essa discussão sobre as relações entre a imprensa, o crime organizado, o poder público e as campanhas eleitorais vão se dar no âmbito da própria imprensa.

O papel que deveria ser da mídia e dos movimentos sociais organizados vem sendo ocupado pela ficção. E Tropa de Elite 2 não está sozinho. Um novo tipo de ficção seriada brasileira vem surgindo na TV – são os seriados policiais. A Fox Channel prepara a terceira temporada da série policial 9 mm São Paulo; a Record Entretenimento anunciou seus planos de transformar em filme a série A Lei e o Crime (Record); Força-Tarefa (Globo), um seriado sobre um destacamento policial especial, voltado para combater a corrupção dentro da corporação, no Rio de Janeiro, vai para nova temporada em 2011, embalada pelo sucesso no México. O último a entrar no ar, este ano, foi Na forma da lei, lançado pela Globo, que associa longas cenas de tribunais ao cotidiano violento dos policiais cariocas.

O inimigo, agora, é outro

E, a exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos na década de 50, os goldens years, em que esses programas, extremamente populares, originados do rádio, pareciam representar a única possibilidade de discutir os conflitos urbanos das civilizações modernas, no Brasil de hoje eles representam um espaço que permite abordar de maneira ampla e democrática as mazelas nacionais, uma vez que as telenovelas não conseguem sair muito do folhetim em que os conflitos ricos-e-pobres se resolvem na cozinha e o modelo propagado é o do carioca way of life do Leblon.

O sucesso internacional de filmes como Cidade de Deus e a premiação de Tropa de Elite no festival de Berlim em 2008, com o Urso de Ouro, parece ter contribuído para estimular essa nova produção, que mescla exclusão social, violência urbana com conhecidas fórmulas de seriados de ação americanos, a exemplo da franquia Law and Order. O policial brasileiro, entretanto, assalariado e longe do heroico modelo dos policiais americanos do gênero, vive em permanente conflito com o sistema Judiciário e a corrupção da corporação.

Nenhuma dessas produções anteriores, entretanto, foi capaz de colocar a mídia diante do impasse que Tropa de Elite 2 traz e que vai muito além das eleições de 2010. A questão não se resume a debater a liberdade de empresa X liberdade de imprensa, mas as relações promíscuas entre a imprensa e o poder político e a necessidade de se estabelecerem novas formas de lidar com o problema. O inimigo, de fato, agora é outro.

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Mestre e doutora pela ECA-USP, São Paulo (SP), professora de Comunicação da Uninove, São Paulo e autora de Fora do Eixo: Indústria da Música e Mercado Audiovisual no Nordeste (Editora UFPE,2010)