Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A mídia e o revival dos anos 80

Era uma vez um mundo muito feliz. As pessoas prezavam os brinquedos da infância como os maiores inventos da humanidade. Falavam de suas primeiras bicicletas como tesouros perdidos da arqueologia. Seus chicletes de bola eram seus alimentos mais energéticos. Seus enlatados de TV foram sua mais alta formação cultural. Consideravam a cultura trash a mais fina flor da vanguarda cultural mundial. Seus grupos musicais favoritos foram o Dr. Silvana & Cia., Absyntho e Menudo. O melhor do rock, para eles, foi feito por grupos como Bon Jovi, Poison e Motley Crue. Sonhariam dar o Prêmio Nobel da Paz ao palhaço Bozo. As calipígias Rita Cadillac e Gretchen era o que eles entendiam como personalidades feministas.

Essa é a forma pela qual a década de 80, assim como a cultura passadista em geral, está sendo traduzida pela grande mídia. Explorando o passado de uma forma caricata e estereotipada, a mídia acaba dando o mesmo tratamento aos seus admiradores, vistos como devotos de uma religião baseada nos discos voadores.

O indivíduo que cultua o passado é tratado, assim, como um débil mental, mais preocupado em ninharias, como se até uma bolinha de gude que ele encontrou numa rua de São Paulo em 1982 fosse uma relíquia do passado. Ou então é tratado como um esquisitão, situado à margem da sociedade, afeito a cultuar coisas supostamente obsoletas. Mal sabe a grande mídia que, por exemplo, os discos de vinil, extintos por imposição unilateral da indústria fonográfica (em crise com os CDs caríssimos e com o combate à pirataria feito mais pelo discurso sensacionalista do que por medidas concretas), se transformaram em artigos de vanguarda, e não só pelos DJs, mas até por jovens que, nascidos sob a era do CD, passaram a cultuar o tradicional formato do bolachão.

Em certos momentos, a cultura passadista é difundida de forma tão confusa que os jovens atuais, já sujeitos à confusa assimilação das informações acumuladas (o que preocupa os mais sérios especialistas em educação no país), acabem confundindo o saudosismo em geral com o modismo da revalorização dos anos 80. Uma mensagem de um jovem, exibida no programa Altas Horas, da Globo, classificou a série de desenhos animados Manda-Chuva, produção de Hanna-Barbera dos anos de 1961 e 1962, de ‘ícone dos anos 80’.

Isso se agrava quando o brasileiro que sente tantas saudades dos anos 80 menospreza fatos importantes como o fim da ditadura militar, um sonho de muito tempo e que se considerava definitivamente impossível, mesmo com o desgaste político dos militares, que somente havia se agravado em sucessivos governos. A eleição de Tancredo Neves é ignorada solenemente. A ascensão do operário e hoje presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva não tem uma menção sequer. Mas Gretchen, Sidney Magal e Bozo são citados à exaustão, como se fossem personalidades sérias.

Lembrar para esquecer

Numa época como hoje, em que o Brasil passa pela era do contentamento, rever o passado deveria ser muito mais do que rever a infância, mas comparar passado e presente e verificar quais os problemas que enfrentam a cultura e a sociedade brasileiras de hoje.

As referências do passado já foram resgatadas há um bom tempo nos Estados Unidos, na União Européia e no Reino Unido. Os EUA estavam vivendo a chamada ‘era do contentamento’ – bem explicada pelo economista John Kenneth Galbraith em seu livro A cultura do contentamento (São Paulo: Pioneira, 1992) – que acabou simbolizando a década de 80 que, para os norte-americanos, foi extremamente lamentável, baseada numa cultura descartável e na euforia econômica de executivos aventureiros, os famosos yuppies. O Reino Unido foi culturalmente melhor do que os EUA, apesar de seus popstars de olho no mercado hit-parade de Los Angeles e Nova York (Boy George, George Michael, Phil Collins), mas viveu a era ultraconservadora da ‘dama de ferro’ Margareth Thatcher.

Resgatar o passado era uma forma de norte-americanos e britânicos esquecerem os tempos recentes de superficialismo cultural e opressão político-econômica do imperialismo. E ainda assim de uma forma bem menos alienada do que a que vemos no Brasil.

Geração indefinida

O Brasil, dos anos 90 para cá, está vivendo a ‘era do contentamento’ que os EUA viveram nos anos 80. Se os ianques tiveram o Miami bass, o pop descartável adolescente e o chamado ‘metal farofa’ (diluição caricata do heavy metal) naquela década, o Brasil de hoje tem toda a música brega / popularesca, o pop narcisista adolescente e o estereotipado rock nacional com bandas que mais parecem ter saído de comédias estudantis de quinta categoria, como Detonautas, Charlie Brown Jr. e CPM 22. A ‘cultura do contentamento’ dos EUA foi governada pelo ex-ator Ronald Reagan e pelo pai do ‘heróico’ George W. Bush, George Bush. Ela durou de 1979 a 1992. O contentamento do Brasil foi governado pelos Fernandos, Collor e Henrique Cardoso, e seus efeitos, iniciados em 1990, ainda resistem na Era Lula.

Como o ‘contentamento’ norte-americano, o brasileiro tem todo o ‘alto astral’ da chamada ‘era do entretenimento’: noitadas excessivamente valorizadas; música valorizada mais pelo espetáculo, pela coreografia e pelo marketing ‘bom moço’ de seus ídolos; a superestima dos desfiles de moda; culto ao corpo; deslumbramento com a tecnologia, a partir de situações como brincar com os recursos do telefone celular, além de pessoas incapazes de conhecer pessoalmente um novo amigo procurarem grupos em chats e no Orkut.

Em contrapartida, a ‘era do contentamento’, tanto lá como cá, terá como fruto maior a indefinição de uma ‘geração X’ (que no Brasil nasceu a partir de 1978) diante dos desafios e responsabilidades da vida de indivíduos marcados pela formação cultural duvidosa e pela alienação na juventude. Uma geração que prolongou a adolescência numa curtição alienada e sem fim e que terá que encarar as duras cobranças que o cotidiano fará em suas vidas.

Preguiçosa satisfação

Da mesma forma que a ‘era do contentamento’ dos EUA gerou a figura do ‘politicamente correto’, a do Brasil gerou o discurso em prol da ‘cidadania’, da ‘paz’. Não há uma postura ‘politicamente correta’ assumida, mas mesmo ídolos de gosto duvidoso falam em ‘paz’ e ‘cidadania’, uma coisa impensável nos tempos da Contracultura. Os políticos de direita agora são ‘também progressistas’, e há todo um marketing que explora ideais filantrópicos de maneira piegas, como se fosse fácil mostrar a imagem de um menino de rua que, numa simples edição de imagem, reaparece com uniforme escolar com caderno e lápis na mão.

Nossos reality shows na TV, nossos programas ‘irreverentes’ de rádio e TV, nossa imprensa com um discurso excessivamente coloquial – como se a linguagem escrita quisesse ser um plágio da linguagem oral –, nossa mídia sensacionalista, nossos ídolos popularescos que se ‘agigantam’ em apenas cinco anos de carreira, nos fazendo esquecer de sua mediocridade, tudo isso define os tempos de ‘contentamento’ num Brasil com pressa para integrar o Primeiro Mundo e com uma ânsia exagerada em alcançar a prosperidade, fazendo com que qualquer manifestação de senso crítico, saudável numa verdadeira democracia (que já não considera o ato como ‘subversivo’), seja vista como coisa fora de moda, deprimente ou ‘anti-social’.

O conformismo é ‘justificado’, assim, por uma realidade ‘alegre’, ‘livre’ (mesmo com libertinagens em prol de sexo, violência e debilidade mental que desafiam os conceitos mais liberais de moral e estética cultural) e ‘democrática’ – apesar de 99% do que representa esse universo de ‘modernidade’ serem decididos por meia dúzia de empresários do entretenimento, de donos de blocos carnavalescos e apresentadores de TV como Luciano Huck – que inspira uma preguiçosa satisfação nas pessoas, mesmo nas populações pobres, que esquecem suas misérias vendo seus supostos representantes expostos no circo de baixarias da televisão.

Vivência e conhecimento

A mídia que se dedica à cultura passadista, salvo exceções, se contradiz em seus propósitos. Pretendendo ser uma espécie de ‘encontro’ entre as gerações mais adultas que, décadas atrás, apreciavam de utensílios a programas de TV, essa mídia peca em usar uma linguagem infantilizada. As revistas Flashback e Mundo Estranho, derivadas da série Superinteressante da Editora Abril, são um típico exemplo disso.

A edição das páginas cria uma estética escolar, claramente irônica, e os textos, embora informativos, são carregados de gírias, comentários irônicos e os títulos publicitários que corrompem a maior parte da imprensa no Brasil. O pretexto é tratar dos assuntos com uma linguagem ‘acessível’ e de forma ‘bem-humorada’. Só que isso está se tornando um lugar comum na mídia de entretenimento no país. Em muitos casos, o que seria bem-humorado apenas está sendo pateticamente ‘engraçadinho’.

A impressão que se tem é que os textos são destinados a um público que não vai além dos 18 anos de idade e nem sequer havia entrado na universidade. Então, por que essas publicações falam do passado, se pela linguagem adolescente não parecem ser destinadas aos adultos saudosos das referências do passado?

Outras gerações também se lembraram da infância quando se recordavam do passado. Mas, sendo hoje adultas, essas pessoas juntam o saber vivenciado ao saber histórico, aprendido ao longo dos anos.

Reles filosofia

As memórias do passado, para uma pessoa adulta, são a soma de referências que juntam a experiência de vida na infância e juventude com as referências sociais transmitidas por amigos e parentes e que escapam da memória dos saudosistas. A elas também se juntam referências históricas aprendidas ao longo do tempo, sobretudo no cotidiano escolar e universitário.

A geração que foi criança nos anos 50, por exemplo, também se lembra de bolinhas de gude, de suas primeiras bicicletas, de seus brinquedos da Estrela e da Trol, de suas balas Juquinha, goiabadas Cascão, biscoitos Aymoré e refrigerantes ‘caçula’ da Antarctica. Mas sabia sobre o macarthismo, sobre o surgimento da televisão no Brasil, sobre a tragédia de Getúlio Vargas, a colocação em órbita do Sputnik pelos russos, acirrando a Guerra Fria entre os EUA e a URSS.

Só para se ter uma idéia, um dos maiores escritores da atualidade, Ruy Castro, certamente não seria metade do que é se ele, nascido no fim dos anos 40, tivesse se limitasse a estudar a humanidade depois dos anos 50 e a entender essa década apenas por suas memórias de infância. Se fosse por essa metodologia que marca a juventude atual, certamente não teríamos sequer 1% da brilhante bibliografia do jornalista. E ele se limitaria a falar de Beatles e Jovem Guarda, enquanto Chega de saudade se limitaria a reles filosofia de vida para a curtição do presente.

Até quando o Brasil continuará sendo o país da memória curta?

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Jornalista em Salvador