Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A mídia na guerra santa

Começou com uma série de caricaturas, pode acabar em catástrofe. O confronto era inevitável, faltava o pretexto. Qualquer que seja o nome adotado (‘choque de civilizações’, ‘culturas’ ou ‘devoções’), era fatal uma colisão competitiva entre mídia e religião.


São sistemas assemelhados de difusão de crenças e idéias – um é dinâmico, incessante, avassalador; o outro é estático, poderoso, igualmente avassalador. Iguais e opostos. Redutores e exacerbados. Ambos com forte teor opiáceo. Mesmo quando religião e mídia estão associados – como no caso americano e também brasileiro – ou quando se polarizam como ocorre agora na Europa com relação ao Islã e no Oriente, com relação ao que se designa como ‘democracia ocidental’.


A religião midiatizada começou com a impressão da Bíblia em alemão no fim do século 15. Lutero pretendia a volta às origens, acabou na direção contrária.


A midiatização religiosa conseguiu levar a superpotência americana, construída a partir do racionalismo científico, a negar as teorias darwinistas da evolução das espécies e santificar o ‘criacionismo’ (e algumas de suas variantes). Os EUA estão, neste momento, enfiados na exploração do universo além do sistema solar e, ao mesmo tempo, submetidos às mais obscuras doutrinas cosmogônicas geradas nos laboratórios teológicos da Casa Branca.


Apelo à razão


Este mesmo vetor midiático-religioso alimenta em outras partes do mundo um conflito que poderá ganhar proporções impensáveis se não for rapidamente desativado pelas lideranças dos Estados teocráticos e pelos verdadeiros bastiões liberais aos quais não pode interessar a radicalização do confronto religioso.


No limiar do século 21 retornamos ao final do século 18, quando o Iluminismo revelou o problema dos problemas: a convivência entre os diferentes. Tolerância versus intolerância, a questão é esta. E situa-se além do conflito entre liberdade de expressão e dogmatismo, entre democracia e fanatismo.


Publicar ou não publicar charges que ofendem as crenças religiosas é apenas a ponta visível de uma convulsão subterrânea que se arrasta ao longo dos séculos sob diferentes disfarces e sem qualquer indício de solução. Na metade do século 20, recém-findo, tivemos um exemplo horrendo de religião do Estado capaz de cometer as maiores barbaridades.


O monoteísmo encarnado pelo patriarca Abrahão e que deveria promover uma aproximação com a noção de Deus único e redentor, acabou por exacerbar as devoções. Religião deixou a esfera do espírito para transformar-se em instrumento de poder. Isso não significa que o paganismo e o politeísmo são a solução para acalmar o vulcão que se anuncia, mas revela algo inquestionável e definitivo: o caminho da coexistência entre os homens passa obrigatoriamente pela estrada da razão.


Quando se trata de religião, o coração deixa de ser a usina de bons sentimentos para converter-se em matriz do ressentimento. Com isso somos obrigados a retroceder ainda mais no tempo e chegar ao século 17 para fazer de Descartes e Spinoza as nossas referências.


Ao recorrer à razão não temos outra alternativa senão dirigir a atenção para a nossa realidade e formular uma única questão: a religião midiatizada e politizada não poderá produzir aqui, entre nós, confrontos religiosos-culturais-civilizatórios com a mesma intensidade de outros continentes?


Soluções equivocadas


Na Europa, as massas de imigrantes muçulmanos ainda não conseguiram se integrar (ou não lhes foi assegurado o direito de integrar-se) ao Estado republicano e secular. Depois de mil anos de guerras – a maioria relacionadas com religiões – os europeus chegaram finalmente à conclusão de que religião e Estado devem caminhar separadamente. Esta é a única forma de institucionalizar a tolerância. Mas fracassaram na efetivação desta tolerância. Os guetos foram destruídos na Europa Central por ordem imperial em meados do Setecentos. Na Europa, o descaso contemporâneo deixou que proliferassem.


No Brasil, a ambigüidade da nossa Carta Magna e a nossa tradicional inapetência para estabelecer princípios claros, produziu este milagre de sincretismo: no preâmbulo invoca-se a proteção de Deus, nos objetivos fundamentais da República excluiu-se a separação entre Religião e Estado, entre os direitos e garantias fundamentais menciona-se que é ‘inviolável a liberdade de consciência e de crença’, mas em seguida assegura-se ‘a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva’. Esqueceram dos agnósticos, descrentes e adeptos de confissões minoritárias que dificilmente conseguirão prestar assistência em todas as entidades.


Somos tolerantes mas não absolutamente tolerantes. Ma no troppo é o nosso andamento preferido. Gostaríamos de retomar os princípios seculares da Primeira República mas não temos a o estofo para manter a religião no seu nicho espiritual. Deixamos brechas para que ela transborde.


Esta predileção para soluções equívocas e contraditórias permite um perigoso embaralhamento entre política e religião e entre mídia e religião – que, com o passar dos anos, só tende a se agravar perigosamente graças ao poder multiplicador dos meios de comunicação.


Silêncio da mídia


Ao poderio midiático dos evangélicos, escancarado e flagrantemente inconstitucional, opõe-se agora o poderio midiático da Opus Dei, disfarçado, sofisticado e igualmente ilegítimo.


Nossos constituintes de 1986-88, pressionados pelos diferentes lobbies sobretudo econômicos, esqueceram de definir o caráter leigo e absolutamente democrático do Estado brasileiro. A questão para eles não era premente. E, por coerência, despreocuparam-se em definir a natureza obrigatoriamente pluralista da mídia eletrônica (uma concessão pública).


Assegurada a liberdade de crer e descrer, esqueceram-se os autores da Carta Magna de garantir o resto: esta liberdade deve ser estendida aos demais poderes e instituições republicanas. A imprensa é a principal delas. Se os jornais e revistas independem de concessões e licenças (como ocorre com as emissoras de rádio e TV), isso não significa que estejam desobrigados de respeitar o espírito da Lei Maior no tocante à diversidade e à liberdade de consciência.


O silêncio da mídia brasileira (impressa e eletrônica) diante das revelações da matéria de capa da revista Época (nº 400, de 16/1/06) sobre o poderio da Opus Dei é uma veemente confirmação de que há algo errado em matéria de pluralismo em nossa imprensa.


A extensão e a virulência dos conflitos religiosos na Europa e Oriente desvendam claramente onde poderemos chegar quando os contritos tratores da fé são autorizados a passar por cima do pluralismo.