Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A mistura que não quer calar

Abraham Maslow falava sobre uma ‘hierarquia de necessidades’ psicológica, pela qual as pessoas dão prioridade, sucessivamente, às necessidades de déficit (as exigências fisiológicas de satisfação da fome e da sede), às necessidades de segurança (abrigo e estabilidade) e, finalmente, às necessidades do ser (sentimento de integração, amor, respeito e reconhecimento). [Ver Abraham H. Maslow, ‘A Theory of Human Motivation’, Psychological Review, 50 (1943): 370-96; disponível aqui].


Que os homossexuais tenham sido desrespeitados em inúmeros momentos históricos, e continuem sendo, não é novidade. Por isso mesmo, é urgente que certas injustiças sejam continuamente divulgadas.


Em primeiro lugar, sabemos que as necessidades de segurança (abrigo e estabilidade) são muitas vezes um sonho para tantos homossexuais, expulsos de casa, atacados por pessoas intolerantes (geralmente movidas, direta ou indiretamente, por preconceitos religiosos) e desprezados pela polícia quando buscam seus direitos básicos (ver, por exemplo, o caso da bomba jogada de um edifício durante a última parada gay em São Paulo [ver aqui, retranca ‘Policial é tão bonzinho’, e também aqui, aqui e aqui).


Boates, sexo rápido e drogas


Quanto às ‘necessidades do ser’ (integração, amor, respeito e reconhecimento), o que resta dizer? A maioria dos ‘crentes’ (incluindo católicos, espíritas, protestantes das mais variadas linhagens e muçulmanos) defende que o homossexualismo ‘não é natural’. Claro que, para isso, desprezam qualquer conhecimento de biologia que poderia situar esse ‘natural’ num reino fora do ‘fantasmagórico’, mas para que fariam isso? Certamente tal raciocínio (isso mesmo, pensar) os faria chegar a conclusões incômodas sobre a pertinência de boa parte do seu sistema de crenças (senão todo ele).


Fosse o homossexualismo ‘não natural’, o que isso implicaria? Que as aspirinas, os automóveis, cigarros, aviões e transfusões sangüíneas deveriam também ser abominados e desprezados? Ou que a guerra, a inveja, a ira, a cobiça e o medo são coisas boas, uma vez que são naturais?


‘Homossexuais não geram descendentes’; ora, celibatários também não. Nem pessoas ou casais estéreis, nem portadores de síndromes genéticas, como Turner e Klinefelter, nem aqueles que, por decisão própria, decidiram não ter filhos. Além do mais, até quando a superpopulação continuará sendo relegada à categoria de ‘não-problema’? Seguiremos a máxima bíblica do crescei e multiplicai-vos até quando? E principalmente, por quê?


Dizer que os homossexuais são imorais e promíscuos pode até ser verdade. Mas como seriam morais quando a ‘moral’ dominante os exclui? E como fugiriam à promiscuidade quando é quase impossível encontrar um parceiro, uma vez que estão todos ocupados fingindo o que não são? Pior, quando não podem contar com apoio familiar, nem com a sociedade, para se iniciarem no complexo mundo amoroso? Pelo contrário, o único lugar onde têm liberdade e tranqüilidade, onde podem ser eles mesmos sem riscos, é nas boates que cheiram a sexo rápido e drogas.


‘Respeitamos a sua opção’


O ideal religioso que impede a integração, o amor, o respeito e o reconhecimento de homossexuais, o mesmo que impede que uma jovem decida sobre deixar ou não que um embrião em sua barriga se desenvolva até se tornar uma criança, está mais para ‘amor’ ou para ‘uma grande população fortalece o império’? Essas religiões estão mais interessadas no número de pessoas (e fiéis) ou em nossa qualidade de vida?


Voltando ao que é ou não natural, fêmeas de chimpanzés bonobos usam o sexo de várias maneiras, reprodutivas ou não, e também para diminuir a tensão em suas sociedades e sobrepujar os instintos mais agressivos e dominadores dos machos. Por que esse exemplo, como tantos outros do reino animal, permanece largamente ignorado? Talvez porque, do contrário, teríamos que admitir que o ideal heterossexual não é a única alternativa encontrada na natureza. Ainda mais, precisaríamos admitir que uma maior liberalidade sexual poderia ser a chave para resolver vários de nossos próprios problemas. Mas as igrejas pressionam contra a educação sexual nas escolas (até mesmo a heterossexual), num ato selvagem de profunda ignorância e impensadas conseqüências, e justamente quando os jovens estão numa explosão de hormônios, doenças sexualmente transmissíveis e, claro, grávidas precoces.


Outro argumento comum na boca de quem quer seguir ignorando essas questões é que o homossexualismo seria uma ‘opção’. Ao dizerem ‘respeitamos a sua opção’, estão querendo dizer ‘mas você deve assumir as conseqüências dessa opção, quaisquer que sejam’. Em outras palavras, ‘Você quer mesmo mudar uma cultura (leia-se preconceito) tão arraigada?’ e também ‘Lavamos nossas mãos sobre as causas do preconceito.’ Precisam acreditar nisso, pois como a religião poderia explicar a origem desse comportamento? Mas a homossexualidade não surge por opção consciente, como a heterossexualidade também não. Só um bissexual tem a opção de escolher, a cada relacionamento, o gênero com o qual se relacionará.


As convicções religiosas


A psicologia e a sociologia da religião poderiam colocar toda essa hipocrisia abaixo, mas os heterossexuais estão quase sempre namorando demais, trabalhando demais, cuidando das crianças demais, e não podem ‘perder’ seu precioso tempo estudando aquilo que garante seu lugar ao lado da maioria. Ainda que não levem a religião muito a sério, é difícil negar que seja por princípios religiosos, muitas vezes esquecidos, que emitam opiniões fulminantes sobre esse fenômeno ainda largamente desconhecido – a diversidade sexual humana.


Apelam para argumentos risíveis como ‘sua vida sexual é apenas um detalhe’, para poderem tampar aquilo que não querem ver – quando a vivência sexual dos heterossexuais é central não apenas na vida de cada um, mas também na sociedade e até parte decisiva dos ‘sagrados sacramentos’. A maioria dos casais gasta quantias consideráveis quando se casa, mas aconselha-se aos homossexuais que ‘escondam esse detalhe apenas para si mesmos’. A razão não é outra: dar a gays e lésbicas integração, amor, respeito e reconhecimento obrigaria a sociedade a olhar mais de perto suas convicções religiosas e o que veriam certamente os obrigaria a repensar toda uma vida.


Como se diz, pensar dói…

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Biólogo, Manaus, AM