Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A morte do papa e o espetáculo kitsch

A mídia transformou a morte e os funerais do papa num grande espetáculo kitsch. Assim se pode fazer uma leitura semiológica seguindo a tradição estruturalista francesa de Guy Debray e Jean Baudrillard. O espetáculo é kitsch porque os ritos que pertencem à cultura eclesiástica católica (do alto clero, diga-se de passagem) foram indevidamente apropriados pelos meios de comunicação de massa e a internet comercial. Tão somente fundamentados para despedir-se, encomendar a alma do pontífice e expressar a dor da partida, os símbolos da agonia e dos funerais ganharam novos significados. Tornaram-se produtos do mercado simbólico jornalístico.


A cruz do papa


As janelas com as luzes acessas do quarto onde o papa João Paulo II agonizava eram o sinal para a constante vigília da mídia. Transmitindo ao vivo, emissoras como CNN e Fox News não tinham novas informações, mas o novo estava ali latente. A qualquer hora as luzes apagariam, as janelas fechariam e a morte do pontífice seria anunciada em primeira mão a todo o mundo. Isso justifica o alerta? A suspensão da programação? A interminável repetição das mesmas informações que chegam a confundir o ao vivo com o VT (gravado)? Para uma sociedade alicerçada nos valores da concorrência e da competição (ironicamente tão combatidos pelo papa), chegar primeiro significa a única alternativa de sucesso e vitória. Por isso, os olhos de milhares de espectadores do mundo inteiro aguardavam a notícia como abutres aguardam a refeição. Mas para que saber primeiro? Para ser o mais informado do planeta mesmo que só por alguns segundos? Isso só pode valer a pena numa sociedade informacional onde tudo é perecível.


Mas o espetáculo kitsch ganhou mesmo seu ápice quando o corpo inerte do pontífice falecido cruzou, coberto apenas com suas túnicas, a Praça do Vaticano até a Basílica de São Pedro. A mesma imagem permaneceu durante dias nos noticiários, nos impressos, nas transmissões ao vivo, na internet, nas câmeras digitais e dos celulares de milhões de peregrinos do mundo inteiro. Como no consumo de qualquer produto da indústria cultural, as falsas idéias de que ‘eu estive lá’ ou ‘eu trouxe uma relíquia de lá’ confundem os espectadores. Quem em casa assiste pela TV ou pela internet ganha a sensação de presença que nunca existiu. Quem foi até lá, enfrentou 24 horas de fila e imitou a mídia filmando ou fotografando o corpo do papa, exibe a sensação como troféu: ‘Trouxe uma relíquia do momento histórico’. Pode uma relíquia ser tão somente uma cópia de uma imagem? Se pode, então, as gravações das transmissões das emissoras, as fotos e os vídeos pescados na internet são relíquias tão ou mais preciosas do que as cópias de quem enfrentou horas de fila.


A dor e a emoção da partida de João Paulo II foram ofuscadas pelos flashes que capturam o momento. Essa ambição de transcender o tempo e eternizar-se é, todavia, um valor cultural que pode impulsionar a construção e o desenvolvimento de uma sociedade que tenha, oxalá, valores como honestidade, justiça, solidariedade e liberdade que, para pregá-los, o papa João Paulo II carregou a cruz hi tech da exposição à mídia kitsch até o fim de sua vida.

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Especialista em Docência do Ensino Superior pela Universidade Cândido Mendes, bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará, assessor de comunicação da Prefeitura Municipal de Quixadá, professor dos cursos de Comunicação Social (Faculdade Evolutivo, Faculdades Nordeste e Instituto de Ensino Superior do Ceará)