Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A Nike joga bonito?

Há na Copa muito mais do que o que se passa nos gramados. E isso, que também muito interessa, pouco ou quase nada é noticiado. Em nome do dinheiro. Da ganância. Do comprometimento firme entre grupos econômicos, políticos. Em nome da hegemonia de pensamento. Da hegemonia da imagem, da aparência. Da produção da imagem desejada e desejável. Mesmo assim, o esforço em manter a bela beca de quem banca a festa salta aos olhos. Por isso é bom o estado de sensibilidade permanente. Para captar o instante de desvio, as nuanças do desequilíbrio, os períodos de realidade proibida. Aquilo que em seguida poderá ser ‘corrigido’, e geralmente o é.

Escrevo sobre algo que se inscreve na nossa realidade como patamar de grande controle social, como instância de influência sobre o inconsciente. Como capitalização da subjetividade de conjuntos enormes de pessoas. (Ou seria das subjetividades?) E isso se dá, diariamente, na arena midiática. Nos jornais, telejornais, radiojornais, jornais virtuais…

Lembro-me de Aldous Huxley (‘Admirável mundo novo’), de Pedrinho Guareschi (que fala do ‘coronelismo midiático’), do filme O show de Truman (dirigido por Peter Weir e cujo papel principal foi maravilhosamente interpretado por Jim Carrey). Lembro-me de Ciro Marcondes Filho em Quem manipula quem – poder e massas na indústria da cultura e da comunicação do Brasil, livro que cita o funcionamento do ‘modo de pensar capitalista’.

Parece teoria da conspiração? Exagero? Apocalipse, inevitabilidade, alucinação? Não. Creio ser a realidade, nua, diária, que se traveste de forma atraente, para atrair, porém, para que não se veja além de sua vestimenta opaca. Poder de medusa. Efeito de medusa. Chama e petrifica. E o que é a Nike, senão uma empresa-logotipo – termo que ouvi do professor Juan Mederos numa aula de ‘Tópicos Especiais em Estudos da Cultura’, do mestrado de Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso?

O mercado regula

Afinal, a Nike não confecciona materiais esportivos. Ela se configura como um conjunto de escritórios que carimbam mercadorias. Que nelas pincelam sua estonteante marca de status quo. A Nike é, portanto, um fetiche. Algo que milhões de pessoas buscam a partir da posse de produtos divulgados, que está embutido nos mesmos; algo imaterial, que podemos chamar de estilo de vida, modus vivendi. Uma produtora de sonhos tão lindos, brilhantes, que promove viagens imaginárias de porte invejável não pode, então, conviver com a realidade da miséria, da desigualdade social, muito menos permitir que os seus potenciais consumidores observem tanta desgraça.

Por isso é que se dissocia do processo produtivo das mercadorias. Tatua-se (ou melhor, é tatuada) nas mentes de milhões de pessoas como uma instância de brilho próprio, que se afirma apartada de toda a realidade possível. Pois Nike está acima do que é costumeiro. Suor, sangue, escravidão em dias atuais, seja em Cingapura, Taiwan, seja em qualquer outro lugar… isso é tudo intriga, mentira, inveja. Não é ela, a Nike, que faz essas atrocidades com o ser humano! São empresas terceirizadas por ela. E essas terceirizadas terceirizam parte do serviço a outras mais. Ou seja: a Nike fica distante de tudo isso. Nem toca o horror.

E a propósito, para que sindicatos que desejam defender homens, mulheres, mulheres grávidas, crianças de jornadas insuportáveis de trabalho? E nem é a Nike que impede essas coisas que tanto chamam de direitos. Ela, a Nike, está muito mais preocupada em fazer carimbos cada vez mais reluzentes, próprios para as pessoas que gostam e sabem brilhar, como o Ronaldo Nazário e como você. Aliás, você e Ronaldo Nazário são iguais pois, se ele conseguiu, você também pode. Da mesma forma, para que Estado, para que leis trabalhistas? Muito bem se vive com o mercado regulando a lei da oferta e procura, com a flexibilização das relações entre empregados e bons patrões.

A perturbação da realidade

E quem vai acreditar – ou se acreditar, quem vai pôr a culpa na Nike – nessa história de que a marca que produziu a campanha publicitária ‘Joga bonito’ paga ao ano à seleção brasileira de futebol 13 milhões de euros, ou cerca de R$ 38 milhões, e que os trabalhadores asiáticos recebem ao dia, graciosamente, só 3,76 euros, ou em torno de R$ 11, pela confecção dos materiais dos astros da bola?

Isso é coisa dessa tal de Oxfam Internacional, uma ONG. Isso é coisa desse tal de Brasil de Fato, jornal de esquerda, que apóia movimentos sociais e fica veiculando esse tipo de notícia, só para manchar a imagem de grandes empresas. E não vilipendiaram a imagem apenas da Nike. Também incluíram Adidas (responsável pelas bolas da Copa), Puma, Lotto, Umbro, Asics, Fila, Kappa, Mizuno, New Balance, Reebok, Speedo.

Como não dissociar o processo produtivo das mercadorias se o que a indústria da capitalização da subjetividade quer é vender sonhos? Se a Nike quer ganhar muito dinheiro com isso, não pode permitir que a realidade perturbe a criação de uma realidade tão mais interessante para se desejar viver. O pensador francês Jean Baudrillard já dizia em 1968, em seu livro O sistema dos objetos, que a publicidade vive de impedir a perturbação da realidade. O valor monetário, o trabalho, o choro de dor e a exploração podem cortar a ‘relação miraculosa’ (termo dele) entre o consumidor e a sociedade distribuidora de bens, que lhe remonta subjetivamente à sua primeira infância, quando sua mãe distribuía, gratuitamente, tudo o que necessitava.

O importante é torcer

Por isso é que a propaganda da Nike em época de Copa não pode, nem deve, mostrar que a maioria esmagadora (a redundância se faz necessária) dos jogadores de futebol brasileiros não ascende socialmente pelo caminho da bola. A maioria deles pára antes de virar estrela (aliás, é parada, porque tem que ganhar dinheiro para sobreviver).

Por isso é que aquela propaganda da Nike intitulada ‘Espírito de equipe’ é do jeito que é. Gente feliz, muito feliz, sorrindo muito, cantando muito. Um vestiário com muita luz, com materiais da Nike espalhados por todos os cantos. Jogadores trocando de roupa para o jogo e, ao mesmo tempo, tocando a bola, mostrando todo o talento nato (será?) do brasileiro em termos de futebol. Atletas reunidos em roda, rezando para jogarem bem, e a marca Nike ali, fixada nas camisetas do Brasil, perto do peito, do coração brasileiro. Depois, jogadores em bela jogada que termina em gol, que termina em comemoração na lateral do campo. Uma propaganda muito bem iluminada para não lembrar das favelas de onde boa parte desses jogadores saiu; das favelas onde milhões de seus contemporâneos ainda habitam e onde outros tantos já foram enterrados.

Mas isso não importa. O importante é torcer pela seleção brasileira. Cantar o hino nacional. Comprar bandeirolas. Adesivos. Camisetas. Chuteiras. Enfeitar-se de patriota. De brasileiro. Principalmente se for da marca Nike. Afinal, a Nike joga bonito. A Nike joga bonito?

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Jornalista e mestrando em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso