Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A ordem dos fatores altera (e muito) o produto final

A revista Veja, veículo de comunicação brasileiro mais seguido no Twitter (mais de 210 mil seguidores no momento desta redação), acaba de reverberar em sua edição de 23 de junho (nº 2170) a sutil deturpação do caso viral ‘Cala a boca, Galvão’ promovida pela Rede Globo em seu programa Central da Copa no dia 15 de junho. Ao perceber que não haveria como escapar de se posicionar em relação ao caso, já que a iniciativa de um insatisfeito com a atuação do mais famoso narrador esportivo de país acabou se tornando e se mantendo como o tópico mais comentado no Twitter, a Globo chamou à baila o apresentador Tiago Leifert – que tem presença consistente no Twitter (é seguido por quase 200 mil perfis) e vem se destacando nos trabalhos da emissora no Mundial por humanizar a cobertura e por conseguir dialogar de forma divertida com o público jovem – e decidiu mudar a cronologia dos fatos de forma a resguardar a imagem de seu narrador esportivo. Por conseguinte, a sua.


Cabe um histórico de tais fatos, que são três, a título de contexto: primeiramente, antes mesmo da abertura da Copa do Mundo, um alguém indeterminado publicou no Twitter a expressão ‘Cala a boca, Galvão’. Em seguida, inúmeras pessoas, seja por compartilharem da mesma insatisfação que o precursor da pendenga, seja por outros motivos que a esta discussão não são relevantes, passaram a replicar a expressão em suas postagens, de forma a levá-la ao topo do Trending Topics Mundial (chamado de TT, é o ranking de assuntos mais comentados do Twitter e apresenta tanto a hierarquia internacional quanto o ranking específico de alguns países e cidades, entre eles o Brasil) e a mantê-la lá por vários dias. Por fim, algum tempo depois, à medida em que a expressão começou a perder popularidade, outro internauta criativo disseminou a peta de que ‘cala boca’ seria uma expressão-gíria em português para ‘salve’, enquanto ‘Galvão’ faria referência ao nome de um papagaio em extinção; no contexto da falácia, o narrador Galvão Bueno seria personagem de uma campanha para preservar tal espécie, e a expressão ‘Cala a boca, Galvão’ se referiria a tal campanha. O ardil, então, funcionou para manter a expressão no topo do TT por mais algum tempo, até que finalmente começou a perder popularidade (hoje, a expressão não mais figura entre as dez mais populares do mundo ou do Brasil).


Parcialidade interessada


O cume do caso aconteceu quando, no primeiro jogo do Brasil na Copa, em 15 de junho, a própria emissora exibiu nas arquibancadas do estádio Ellis Park, em Joanesburgo, uma faixa que dizia ‘Cala a boca, Galvão’. Nascida no meio online, a ‘campanha’ invadiu os estádios e, à revelia, também a TV. Pois a Globo, como se pode assistir aqui, percebendo que haveria de se posicionar, tratou de inverter a ordem dos fatores, certa de que assim alteraria o produto final. E alterou, já que o jornalismo não obedece aos engenhos da matemática e suas propriedades de comutação. Ao tratar do tema em sua Central da Copa, a emissora deu a entender que primeiro a expressão ‘Cala a boca, Galvão’ foi travestida de ação de preservação ambiental para só então alcançar o ápice de popularidade mundial no Twitter, enquanto na realidade o processo se deu ao contrário: a expressão ganhou o mundo primeiro em seu exato sentido denotativo, já a partir da abertura da Copa do Mundo, em 10 de junho, quando os telespectadores se irritavam com os comentários quase ininterruptos e muitas vezes desconexos do narrador, para só então, dias mais tarde, quando então perdia força, ganhar gradativamente a conotação ambiental que a faria se sustentar por mais alguns dias no topo dos assuntos mais comentados. Pois tal interpretação deturpada acaba de ser reverberada pela revista Veja, em matéria que pode ser lida aqui, ocasião em que o texto tende a conferir significativa parte da responsabilidade pela disseminação do ‘Cala a boca, Galvão’ à falácia da analogia com a questão ambiental.


Os desvios na abordagem da realidade foram concebidos tão discreta e competentemente que praticamente passaram despercebidos aos olhares desavisados. No resultado final da contra-ação de marketing promovida pela Globo e apoiada pela Veja, restou não a correta ideia de que Galvão Bueno foi massacrado na Twitterosfera por ser rejeitado por uma imensidão de espectadores, mas sim, a ideia de que a expressão negativa que levou seu nome disseminou-se na web apenas em função de lhe haverem conferido um sentido figurado.


Mais do que deturpar a realidade e prestar uma contrainformação aos leitores e espectadores, Globo e Veja, com tal tratamento que deram ao assunto, mais uma vez demonstram a parcialidade interessada com que realizam suas coberturas jornalísticas – mal que, a despeito das particularidades deste caso, acomete a grande maioria dos veículos de imprensa de nosso país. A diferença é que hoje, felizmente, tais veículos são enfrentados pela voz coletiva daqueles que, à margem das mídias tradicionais, conseguem criar e sustentar verdadeiras revoluções.

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Respectivamente, jornalista, escritor e graduando em Letras; jornalista e mestranda em Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, MG