Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A pátria, nua e de chuteiras

O ufanismo nacionalista dos brasileiros para com o futebol, na Copa do Mundo, não é novidade. As chamadas ‘patriotadas’ obscurecem posições e análises mais lúcidas, por mais ou menos paixões que uma ou outra nutram pelos selecionados nacionais a cada mundial. Mas o pior é a indução de equívocos e preconceitos preconizada pela mídia que, muitas vezes, extrapola a ética e elimina o gosto pelo belo no futebol praticado por boas seleções que não sejam a brasileira que, aliás, no quesito ‘espetáculo’, termina seu segundo mundial consecutivo a dever bastante e, merecidamente derrotada nas quartas de final. Afinal, até as pedras sabiam que a seleção brasileira deste ano não tinha potencial e beleza nos pés para ir além. No futebol, tudo acontece, mas ainda assim é preciso talento e vontade, ausentes nesta seleção, do treinador ao elenco. Mas voltemos à mídia nacional, esse estranho objeto de desejo a que nos dedicamos sempre neste Observatório.

Em 2010 não faltaram ‘pérolas’ como, dia desses, ao narrar um jogo, Galvão Bueno dizer que a seleção em questão era chamada de ‘time’ porque ‘a única que leva o nome de seleção é a equipe do Brasil’. Absurdo dos absurdos e nem é preciso ir muito longe para contradizê-lo: Portugal também tem a sua ‘seleção nacional’, para não falar em outros países que devem usar o mesmo termo. O tal comentário de Bueno pode até ser ingênuo e inofensivo, como quase tudo o que parte do comentarista, mas o pior é quando a mídia se une para criar inimizades onde elas jamais existiram. E aqui penso especificamente no tratamento que se dá à nação argentina, quando os brasileiros, em geral, estendem a rivalidade do futebol para o campo da História.

Afinal, nos últimos 200 anos não se sabe de um único caso de conflito entre os dois países, seja bélico ou fronteiriço. Mas há os famosos seis a zero que a seleção argentina encaixou na do Peru em 1978, único resultado que eliminaria a seleção brasileira daquele mundial. Pronto, até hoje a mídia alimenta uma rivalidade inexistente entre os dois países, e em todos os campos, não só no do futebol. Tenho comigo que é por conta de subjetividades assim que o conceito de ‘latino-americanismo’ não tem muita consistência no Brasil, pois não resiste a uma ‘pelada’, a um jogo amistoso. Segundo a Folha, mesmo Lula demonstrou um certo sarcasmo ao ‘lamentar’ a derrota dos vizinhos do Mercosul.

Holandeses ‘estão em casa’

Notemos que a ‘rivalidade’ é apoiada pela grande mídia, concentrada, em praticamente toda América, em poucas mãos, ligadas a grandes capitalistas aos quais não interessa uma maior coesão entre os povos e governos progressistas. Basta passar os olhos por algumas manchetes na internet no dia da eliminação da Argentina pela Alemanha: ‘Ufa! Maradona não ficará nu no obelisco!’ estampou O Globo; ‘William Bonner e mulher de Julio César tiram sarro‘ ecoava a Folha, e por aí foi.

Resta perguntar: em 2010, a Copa do Mundo trouxe novidades? No campo da mídia, só mesmo a ‘rebelião’ contra a imprensa e a Globo, em particular, por parte de Dunga (infelizmente, outro adepto do futebol pragmático em detrimento do futebol-arte). Entre os mídia e os jornalistas (‘esporte’ é jornalismo, afinal), poucas novidades quanto ao trato com o ‘outro’, o adversário, logo adjetivado como ‘inimigo’.

Foram muitas as simplificações referentes a contextos diferentes do nacional. Exemplos disso são as coberturas dos jornais noturnos da Globo e da Bandeirantes na véspera do Brasil x Holanda. O Jornal da Band levou ao ar bela matéria dando conta de que a torcida sul-africana se dividia entre as duas equipes, dadas as feridas históricas causadas pelo domínio do país pelos afrikaners, muitos de ascendência holandesa, que levou a décadas do regime de segregação racional que persistiu de 1948 a 1994, o apartheid. No Jornal Nacional, apenas uma frase de passagem do repórter ‘informava’ que os holandeses ‘de certa maneira estão em casa’, por terem chegado ao sul da África no século 17. Brevíssimo comentário que desconsiderou séculos de dominação colonial e as décadas de apartheid.

Sem falsos ressentimentos históricos

Entretanto, a reação do público brasileiro parece ser mais consciente do que a da mídia. Como vem sendo, aliás, na política, nos últimos e no atual contexto eleitoral. Pouco antes do Brasil x Holanda, o JB On-line fez brincadeira de ‘alfinetadas’ em ‘bonequinhos’ dos dois países. Sem entrar no mérito do preconceito que se tem para com o vodu, religião importante e expressiva no Caribe e em zonas de África (notadamente no Benin), a brincadeira registrava mais de 1.700 alfinetadas no bonequinho holandês, mas não poupava o bonequinho brasileiro, que tinha quase 500 alfinetadas. Uma expressão clara do descontentamento do público para com a seleção do Dunga. Afinal, tinha razão o ex-craque holandês Cruyff: quem, brasileiro ou não, gostou de ver em campo e no banco os ‘brucutus’ Júlio Batista e Felipe Melo, ou Kleberson e Josué, num time que podia ter Ronaldinho Gaúcho e Ganso?

Em Fortaleza, findado o jogo, não foram poucos os fogos que ecoaram pelo céu, apesar da derrota brasileira. De certa maneira, um alívio dos torcedores pelo fim das ‘eras Dunga’ e por o fiasco não ter sido tão grave quanto ao do mundial anterior.

Tudo dando certo, este artigo será veiculado na terça, 06 de julho e fica online até depois da final da Copa. Que vença o melhor, seja Holanda, Uruguai, Espanha ou Alemanha. E que o público brasileiro, que gosta de bom futebol, torça para um ou outro sem falsos ressentimentos históricos, pois todos jogaram melhor que a seleção brasileira desde suas primeiras partidas nesta Copa.

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Jornalista, historiador e doutorando em Pós-Colonialismo e Cidadania Global na Universidade de Coimbra, Portugal