Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A propósito de um linchamento

A história sempre me impressionou. Cruzália, pequena cidade do interior paulista, tinha pouco mais que uma rua e muitas casas na zona rural. Era o início da povoação da região sudoeste do Estado e uma doença que se pensava misteriosa atacou crianças. Sem recursos médicos para enfrentar o surto, algumas pessoas atribuíram a doença a duas mulheres, irmãs e curandeiras. Como não conseguiam resolver o problema das crianças, ganharam a fama de bruxas e, numa noite, os homens se reuniram e foram até elas, com tochas, facas e ferramentas agrícolas. Estavam dispostos a expulsá-las. Ou até coisa pior.


Diante da iminência da tragédia, um jovem franzino se colocou na frente da multidão e, com uma enxada em punho, avisou: ‘Elas são inocentes e, se quiserem pegá-las, vão ter que me pegar primeiro.’ O gesto de coragem intimidou a massa enfurecida, que ainda tentou atraí-lo para o que consideravam uma campanha justa. Afinal, os homens queriam livrar Cruzália do Mal. Não o comoveram, e a razão do jovem franzino acabou prevalecendo.


Para minha sorte, anos depois meus pais o convidaram para batizar-me. Diziam que era um velho chato, ranzinza, de poucos amigos. Mas o gesto o tornou referência e os caçadores de bruxas, uma névoa sem rosto nem nome, apenas uma multidão.


Resultado incontestável


Conto esta história para situar os jornalistas que se envolveram na cobertura do Caso PC Farias. Foi um linchamento. Ainda que recorram a pseudotecnicalidades, servindo como elemento de manobra a peritos em disputa, como faz Mário Magalhães, não deixam de ser linchadores. E como o uso do cachimbo entorta a boca, não sabem agir de outra forma.


O Observatório da Imprensa democraticamente abriu espaço para um debate importante, para esclarecer posições obscuras e dar instrumentos para os leitores avaliarem procedimentos. Mário Magalhães usou o texto publicado aqui e o distribuiu às redações, sem dar aos leitores a oportunidade de acesso ao contraponto. Pior: anexou ao texto uma lista com assinaturas de diversos colegas, que nenhuma ligação têm com o caso. Prestaram-se a um gesto baixo, o da multidão que quer isolar um jornalista que ousou discordar. Nesse papel, destacou-se um cronista esportivo que, certamente, não cobriu o caso nem leu o livro, porque se o tivesse feito não teria endossado uma interpretação equivocada. Comportou-se como um elemento de torcida organizada, disposto a linchar o outro apenas porque viu nele a camisa com as cores do adversário. Não merece crédito.


Se tivesse lido, saberia que usei o adjetivo portenho para me referir aos militares que atuavam em Buenos Aires na época da ditadura argentina. Seria o mesmo que falar da ditadura brasileira e dizer ‘os militares de Brasília’ ou brasilienses– não necessariamente nascidos em Brasília, mas atuando na capital do país e centro do poder político. Mário Magalhães tirou o adjetivo de seu contexto. Isolou uma expressão para me atacar. Distorceu o texto. É assim que ele age. Mais adiante, falou que criei um personagem em meu livro ao escrever que PC Farias recebia em seu escritório ‘empreiteiros como Andrade Gutierrez’. Naturalmente não existe a pessoa física Andrade Gutierrez. A empresa é antiga. ‘A trajetória de sucesso começou em 1948, quando três jovens engenheiros, recém-formados em Minas Gerais, uniram duas famílias – os Andrade e os Gutierrez’, informa a reportagem de quatro páginas, publicada em 9/12/1992, na revista Veja, com o título ‘O animal político’. O texto é assinado por mim. A reportagem tirou da sombra Roberto Amaral, diretor da empresa em São Paulo. Foi ele que esteve no escritório de PC Farias e o nome deveria ter sido publicado no livro. Não o foi por um problema de checagem. Basta! está na segunda edição. Se houver a terceira, o nome estará lá.


Mário Magalhães se mostrou um bom checador de textos alheios. Pena que ele não tenha o mesmo cuidado quando escreve. À página 229 do meu livro, registrei que, após a Procuradoria-Geral da República mandar arquivar o inquérito que acusava Badan Palhares de falsa perícia e Augusto Farias de duplo homicídio, Magalhães assinou ‘um dos mais levianos textos já publicados na imprensa.’ Eis o trecho completo:




‘Ganhador do Prêmio Esso com a divulgação das fotografias de Suzana ao lado de PC, Mário Magalhães diz que a Procuradoria da República mandou arquivar o inquérito sem considerar ‘todas as provas produzidas em 1999’. Ele citou as fotografias e afirmou que elas derrubaram a versão inicial sobre as mortes de Paulo César Farias e de Suzana Marcolino. Disse ainda que a polícia fez novos laudos e testes, sem explicar que laudos e testes foram esses, embora se saiba: é o trabalho dos peritos inimigos (concorrentes no comércio de pareceres) de Badan Palhares.’


Digo mais:




‘Confundindo manifestação legal com parecer (opinião), Mário Magalhães concluiu que o texto do vice-procurador continha ‘erros, omissões e contradições’, mas não os explicitou. Só disse que, dois anos antes, Geraldo Brindeiro chegou a escrever em um despacho que parecia impossível o suicídio de Suzana. O jornalista não explicou a seus leitores que era uma manifestação preliminar, pois ele acabara de receber os autos de Alagoas e, se tivesse certeza de fraude, obviamente não mandaria o segundo homem na hierarquia do Ministério Público estudar o caso. Faria ele próprio a denúncia’.


E segue o texto:




‘Na reportagem o jornalista fez um auto-elogio ao dizer que, embora esbarrasse na confidencialidade do inquérito, sabia mais do que o procurador. Magalhães, no entanto, permitiu que fosse impressa na Folha de S. Paulo pelo menos uma mentira comprovada: afirmou que foi erro de digitação um dado que consta no laudo dos peritos que contestaram Badan Palhares. (…) O jornalista admitiu que no laudo desses peritos existe uma referência à altura de Suzana que coincide com o trabalho do legista da Unicamp: 1,67 metro. Magalhães afirma categoricamente que foi um erro de digitação. Na verdade, não foi isso. Aos fatos: depois de Suzana ser exumada pela segunda vez, o perito Daniel Muñoz mediu o cadáver de Suzana e, em seu laudo, escreveu: distância vértix-calcâneo: 1,67‘ (o grifo é atual, não está no livro).


O erro sobre a Andrade Gutierrez será corrigido. Já a mentira publicada na Folha de S. Paulo completará três anos em dezembro. Haverá um desmentido? O livro que aponta esta e outras mentiras da imprensa no caso PC Farias é público desde setembro de 2004, mas Magalhães só reagiu depois que o Observatório da Imprensa abriu espaço para que eu pudesse falar. O programa de TV conduzido por Alberto Dines proporcionou a quebra do silêncio que a grande imprensa impôs a Basta! Magalhães teve que sair da toca, tirar a cabeça que estava escondida no chão. E se insisto para que ele corrija a informação falsa, é porque é relevante. Significa que Suzana foi medida da cabeça aos pés, quando exumada, e o resultado incontestável: 1m67. Depois foi feita medição indireta e divulgadas as fotografias – as importantes fotografias – e se propagou que ela tinha baixa estatura. Para se tirar uma conclusão do que aconteceu em Guaxuma, entendo que a questão da altura tenha menos importância do que outros dados, mas essa discussão deixo para mais adiante.


O fato e a notícia


Ao reagir, Magalhães publicou um texto com muitos números e citações e me fez lembrar uma frase antiga: ‘Os números não mentem, mas os mentirosos fabricam números’. Esse comportamento de citar números lembra políticos como Paulo Maluf e Delfim Netto. Confunde, em vez de explicar. Mas impressiona! Magalhães, entretanto, às vezes também se confunde. Para me atacar, diz que como professor universitário eu deveria saber a diferença entre artigo e reportagem. Pândego. Escrevi outra coisa. Disse que ele levou para seu artigo no Observatório da Imprensa o arquétipo usado em suas reportagens: fez um texto em que usa cinqüenta vezes o ponto de interrogação – ele me corrige, 49! –, expõe perguntas quando deveria oferecer respostas. E, no fundo, no fundo, na essência, o que é a reportagem dele sobre o caso PC Farias? (Usei ponto de interrogação, espero que ele não me acuse de violação de direito autoral.) É uma enorme interrogação.


A altura de Suzana, a juízo dele e de um foneticista, está errada. Portanto, todo o laudo de Badan Palhares está errado. Aconteceu outra coisa e eu quero saber o que é. O que aconteceu, Badan? O que aconteceu, delegado Cícero Torres? Como Rolando Lero, Magalhães fez uma campanha que peca pelo que é primário em jornalismo: a história não tem lead. Relembrando a velha lição: o primeiro parágrafo deve responder a cinco questões: o quê, quando, onde, como e por quê. São perguntas a que respondi com a reportagem ‘Caso encerrado’, na revista Veja, e tornei a responder, com mais detalhes, em Basta! Na linha da conspiração, da tese de queima de arquivo, fica mais difícil. Diria impossível. Impossível porque não aconteceu.


Sob a perspectiva da teoria da conspiração, desafio Magalhães a dar o lead da notícia sobre o que aconteceu na Praia de Guaxuma. Quem matou? Como matou? Por que matou? Ele poderá insinuar. Mas jamais responder. Poderá ainda dizer: ah, isso não é responsabilidade minha. É de quem investigou. Mas acaso faltou investigação sobre as mortes? As fontes de Magalhães quebraram o sigilo telefônico até de torres de Maceió. Quebraram sigilo bancário e fiscal de suspeitos. E nada encontraram. A CPI do Narcotráfico dedicou boa parte do tempo atrás de informações sobre o caso PC Farias e para acusar pessoas que Magalhães e suas fontes consideravam suspeitas. Basta ler o relatório da comissão para constatar que falharam no seu intento. Eles acusam, mas não demonstram, não provam, sequer reúnem indícios.


A denúncia do Ministério Público contra quatro seguranças de PC Farias, acatada pelo juiz de Alagoas, não descreve como foi o crime, não descreve a conduta de cada um. Não sou advogado, mas sei que para acusar alguém é preciso dizer o que essa pessoa fez. A denúncia não dá essa resposta, assim como as reportagens de Magalhães. A coerência de Magalhães não dura dois textos. No primeiro que o Observatório de Imprensa publicou, enalteceu a figura (afável, é verdade) de Ari Cipola, um ‘companheiro que estará sempre ao lado dos que amam a velha e boa profissão de repórter’. Quando contei aqui que ele deixou o jornalismo para ser secretário de Estado, na gestão do governador Ronaldo Lessa, e depois assessor do Sebrae, Magalhães reconheceu que Ari Cipola perdera sua ‘condição de repórter independente’.


Por linhas tortas, Magalhães insinua que foi inescrupuloso ao sugerir que ele tornara secretário de Estado como recompensa por seu trabalho no caso PC Farias. Não disse, não diria isso. Não faço jornalismo de insinuação. Apenas quis desmontar o teatro que Magalhães e os jornalistas que o subscrevem criaram em cima da figura humilde de um jornalista alagoano. Soube que, quando a equipe de Magalhães recebeu o Prêmio Esso, alguns foram às lágrimas quando se encenou a peça da perseguição. Depois, Ari Cipola teve a oportunidade de dizer como estava sendo ameaçado, no programa de Jô Soares. Discípulo da escola de Magalhães, não deu o lead e Jô encerrou a entrevista. O que mais se aproximou de uma ameaça é a referência que fez a um ato hostil de Augusto Farias. Contou que o irmão de PC alardeava em Maceió que a esposa de Ari Cipola trabalhava como funcionária de confiança no gabinete do governador Ronaldo Lessa. ‘Mas isso é ameaça?’, perguntou Jô. ‘Para quem conhece Alagoas como eu conheço, é’. Fim de cena. Pano Rápido. Daqui a pouco a gente volta.


Com esta colocação respondi a um dos questionamentos de Mário Magalhães. Não estava disposto a dar trela às suas perguntas. Não queria me prestar ao papel do professor Raimundo porque entendo que, ao responder às indagações, poderia legitimar uma cobertura equivocada, para não dizer criminosa. O caso PC Farias é simples, do ponto de vista meramente policial.


Só para constar: Suzana teve o motivo, a arma e a oportunidade para matar PC Farias. Deixou o equivalente a um bilhete suicida. Foi encontrada num quarto trancado, com PC. Ali havia uma arma, duas balas deflagradas, uma passou pelo corpo dela e a matou. A outra ainda estava no corpo de PC. A cena foi presenciada por cinco pessoas, os caseiros dona Marisa e seu Leonino, o garçom Genival e dois seguranças. Todos contam a mesma versão. São elementos fortes o suficiente para encerrar o caso. Mas, se a imprensa encerasse, não haveria Globo Repórter, Linha Direta e os jornais teriam que procurar outro assunto.


Reconheço que a morte de PC por Suzana não é digna da biografia de PC. Mas… Na profissão é preciso escolher: ou você tem compromisso com os fatos ou com a notícia e, neste caso, danem-se os fatos. É melhor para o espetáculo, pior para o verdadeiro jornalismo. Estava decidido a não responder a pseudotecnicalidades. Mas, para deixar a impressão de que me faltam respostas para as dúvidas que ele levanta, tratarei de respondê-las – mas não na condição de amado mestre, bem entendido.


Embrulhar peixe


Pergunta do Mário Magalhães:




‘Carvalho critica (Observatório, 14/6) a escolha que a Justiça de Alagoas fez dos peritos que assinaram o segundo laudo. Afirma que eram todos ‘oponentes’ de Badan Palhares.


‘Houve uma terceira equipe que comparou os dois laudos. Sua manifestação foi categórica, condenando os resultados do trabalho coordenado por Palhares. Por que Carvalho cala sobre a existência dessa terceira equipe? Eram também, todos, ‘oponentes’ de Palhares?’


Resposta: dos cinco especialistas que compunham a banca avaliadora, Marcos de Almeida era amigo íntimo de Daniel Muñoz, com que tem trabalhos publicados. Zarzuela, já falecido, dava aulas na mesma universidade de Muñoz, a USP, e não escondia que era do círculo de amizades de Munõz. Uma perita do Instituto de Criminalística que fez parte da equipe era tão alinhada com Muñoz que a participação dela no caso escandalizou os colegas, e ela acabou afastada pelo chefe do IC à época, Oswaldo Negrini, a quem sequer comunicou que participaria do circo em Alagoas. Os outros dois eram teóricos, sem nenhuma experiência prática.


Mário Magalhães, que não considera o caso PC encerrado e cobriu o caso em Alagoas, poderia dizer em que jornal publicou o relatório da equipe ‘independente’ de peritos. O trabalho não está nos autos, mas o promotor Vasconcelos, que a exemplo de Ari Cipola desfilou por Maceió com seguranças pagos com dinheiro público, diz que ele existe, mas me negou acesso a ele. Em entrevista gravada, afirmou que o relatório era para ‘orientar minha denúncia, não para integrar o processo’. Vasconcelos é um tipo raro de promotor: esconde trabalho de perícia pago com recursos do Erário. Magalhães, que não considera o caso PC encerrado, deveria fazer uma matéria.


Pergunta:




‘O médico-legista Fortunato Badan Palhares assegura que, na necropsia de Suzana Marcolino conduzida por ele em 1996, a altura da namorada de PC foi medida. Em 1997, uma equipe de peritos projetou uma altura (cerca de 1,57m) diferente da estipulada no laudo coordenado um ano antes por Palhares (1,67m). Em resposta, o legista afirmou que mediu Suzana. Em 1999, a Folha de S.Paulo (31/3) publicou reportagem descrevendo o procedimento, registrado em vídeo por um cinegrafista da equipe de Palhares. As imagens e o áudio mostram que Suzana não foi medida, nem se tocou no assunto ‘altura’ durante a necropsia. Mesmo assim, o médico continuou a dizer: mediu Suzana.


‘Até hoje, Palhares não identificou em que momento a gravação documenta a medição. Ninguém pode obrigá-lo a dizer qualquer coisa. Mas o vídeo está lá, com a resposta – negativa – à pergunta: Suzana foi ou não medida?’


Resposta: Mário Magalhães já levantou essa dúvida na Folha de S.Paulo e provocou uma acareação entre o professor Fortunato Badan Palhares e dois ex-auliares seus, e a resposta está num pequeno texto, quase pé de página, publicado pelo próprio jornal: as fontes de Magalhães tiveram que recuar e afirmaram que, ao contrário do que haviam dito ao repórter da Folha, não tinham condições de dizer se Badan medira ou não Suzana. É óbvio que não tinham. Para medir cadáveres em mesa de necrópsia, legistas não usam fita métrica. Eles conferem a altura na régua centimetrada que faz parte da própria mesa. Ninguém precisa perguntar nada a ninguém. Basta olhar e anotar.


Badan entregou à Polícia Federal a agenda em que anotou a altura de Suzana: 1,67 metro. No mesmo caderno, está anotada a altura de PC: 1,63. Magalhães diz que, no vídeo que documenta a necrópsia, não existe nenhuma cena que mostre Badan medindo Suzana ou falando sobre a altura dela. Não existe, assim como não existe nenhuma cena em que o legista apareça medindo PC ou falando sobre a altura dele. Será que só a altura de Suzana era importante na exumação?


Magalhães diz que não existe nenhuma imagem ou fotografia que mostre Suzana com a cabeça numa extremidade da régua e os pés num ponto da régua centimetrada que indique 1,67m. Existe uma fotografia e eu a tenho. Por que não a publicou no livro?, indagaria Magalhães. Resposta: porque o livro tem outro propósito. A julgar pelo que escreveu em seu artigo, ele ainda não entendeu que o Caso PC que eu discuto é o terceiro Caso PC. O primeiro foi o da corrupção durante o governo Collor. O segundo, o do crime em Guaxuma. O terceiro, levantado por mim, discute os aspectos Escola Base da cobertura. Vamos adiante, com mais um questionamento de Magalhães:




‘Um teste feito com a participação de alunas da USP foi apresentado em 1999, em Maceió, no debate que opôs duas equipes de peritos. O legista Daniel Muñoz reconstituiu o tiro que matou Suzana. As alunas tinham o peso aproximado da namorada de PC, o colchão era semelhante ao da cama onde ela morreu etc. Considerou-se que Suzana estaria sentada, exatamente na posição em que, conforme Palhares e Carvalho, ela teria atirado em si mesma. A conclusão do teste: com a trajetória – conhecida – da bala, mesmo que Suzana tivesse quase 2 metros de altura, ela seria atingida acima da região mamária (ou não seria atingida). Com 1,57m (ou 1,67m), não se ‘encaixaria’ na trajetória da bala. Ao ser atingida, portanto, na verdade ela não estava sentada. E o suicídio narrado por Palhares – e Carvalho – pressupõe que Suzana estivesse sentada.’


O teste de Muñoz foi contraposto por outro, na defesa que Badan Palhares apresentou às acusações que lhe eram imputadas. O vice-procurador-geral da República lhe deu razão. Muñoz, aliás, disse que iria publicar os resultados de seu exame. Até hoje não o fez. Mas um fato é inquestionável: estive no quarto em que PC e Suzana foram encontrados mortos e observei que a cama é baixa e o buraco na parede ficava a uma altura compatível com o 1,67 de Suzana. Quando ele diz que a trajetória não seria provável nem se ela tivesse 2 metros de altura, talvez esteja se referindo ao buraco na parede que foi produzido pela segunda equipe de peritos. É isso mesmo. Quando Daniel Muñoz e colegas reconstituíram a cena do crime, não havia mais a perfuração da bala na parede e, para fazer seus testes, trataram eles próprios de abrir um buraco. Científico, não?


Uma observação pertinente: mesmo o laudo da segunda equipe não permite a ninguém fazer as afirmações de Mário Magalhães, que levaram pessoas honradas a serem confundidas até com narcotraficantes. Não é um laudo conclusivo. Os peritos contestam a equipe coordenada por Badan em questões pontuais, tentam pegar duplo sentido semântico, isolam situações e, partir daí, raciocinam livremente. É um comportamento que chamei de fundamentalista. Pega-se uma parte e a toma pelo todo. De qualquer forma, o que afirmam é: o mais provável é que tenha ocorrido duplo homicídio. Provável, possível, pode.


Nas redações, todos sabem que ‘pode’ é o verbo-muleta. Quando não existem condições para afirmar algo, usa-se o pode, para manter a cobertura na temperatura elevada. Exemplo: num pequeno texto publicado por Mário Magalhães no dia 31 de maio de 1999, ele usa duas vezes o verbo pode, em situações de extrema gravidade: ‘A versão do padrasto de Suzana pode levar os delegados a também pedirem a prisão preventiva de Lima Filho, que era o segundo homem na hierarquia da segurança de PC Farias’. Pode.


Faz tempo aprendi que autoridade séria não avisa se vai prender alguém. Mais adiante, ele retoma o uso da muleta: ‘Não há definição sobre a questão, mas a polícia de Alagoas pode pedir a quebra dos sigilos bancário e telefônico de Badan e de suspeitos de participar de uma trama para matar PC e Suzana’. A frase é uma fonte para especulação de toda ordem, mas rigorosamente nada tem de substantiva. A propósito, os sigilos seriam quebrados mais tarde e rigorosamente nada de criminoso foi encontrado. Palavras ao vento, impressas em papel que, graças à irresponsabilidade de alguns jornalistas, cada vez mais destina-se ao uso prioritário de embrulhar peixe ou servir de cama para cachorro ou piso para gaiola de passarinho.


Direito legítimo


Vamos à próxima pergunta de Mário Magalhães:




‘De acordo com a versão da polícia de Alagoas em 1996, fundamentada no laudo coordenado por Badan Palhares e abraçado por Joaquim de Carvalho, Suzana atirou duas vezes: assassinou PC e se suicidou.


‘No revólver, contudo, não foram encontradas impressões digitais. Por que Carvalho oculta o fato, mesmo para relativizá-lo? Não é relevante?’


Resposta: não foram encontradas digitais na arma de Suzana como não são encontradas em 95% dos casos de suicídio. É o que diz a literatura internacional sobre o tema. No caso de Suzana, existiam fragmentos de digital, a arma não foi limpa, mas as impressões não tinham todos os pontos necessários para afirmar, com segurança, se eram de A ou B. Domingos Tochetto certamente sabe disso e se seu teste revelou conclusão diferente é um achado que deveria ser discutido em fóruns internacionais. Curioso é que, apesar de surpreendente, o estudo dele não foi publicado em nenhuma revista especializada. Mas serviu para achincalhar os peritos do primeiro laudo através das páginas de jornais como a Folha.


Pergunta:




‘Exame de laboratório e referências do fabricante mostram que o tipo de munição usada contra PC e Suzana deixa como resíduos chumbo, bário e antimônio. Não havia resíduos dessas substâncias nas mãos de Suzana. Segundo Palhares e Carvalho, ela teria atirado duas vezes.


‘Por que Carvalho não informa em seu livro sobre a ausência desses resíduos? Não é relevante?’


Magalhães erra quando diz que não foram encontrados resíduos como chumbo e bário nas mãos de Suzana. Ele, que se mostrou um bom checador de texto alheio, mais uma vez não teve cuidado com o texto da própria lavra. O que está registrado no primeiro laudo é a ausência de antimônio. Pelo entendimento clássico, tiros costumam deixar impregnados nas mãos os três elementos químicos: chumbo, bário e antimônio. Mas a ausência de um deles não significa que não houve disparo. É preciso, então, verificar a quantidade de outros elementos químicos presentes na pele, para descartar ou não a ocorrência do tiro.


Esses exames foram feitos e o resultado: havia 1,47 vezes mais alumínio na pele de Suzana do que na pele normal, 2,18 vezes mais enxofre, 1.000 vezes mais bário, 2,44 vezes mais fósforo, três vezes mais cloro, 7,3 vezes mais ferro e 21,5 vezes mais cobre. Alguns desses elementos existem de fato na fórmula da água Perrier, mas nunca nessa quantidade. Se houvesse, não passaria pelos órgãos de controle sanitário. Se Tochetto chegasse a uma conclusão diferente, ele teria mais um tema para levar a fóruns internacionais. Mas teria antes que publicar o trabalho em revista especializada. Na comunidade científica, jornal diário está tão desacreditado que não vale um minuto de discussão.


Magalhães pergunta:




‘Por que, em seu livro e seu artigo, Joaquim de Carvalho não contou que no primeiro laudo encaminhado à Justiça de Alagoas pela equipe coordenada por Badan Palhares não havia menção à altura de Suzana? A informação só foi enviada depois, a pedidos.’


Resposta: o jornalista se mostra, mais uma vez, impreciso. A informação foi enviada por Badan Palhares, mas não a pedidos. O professor da Unicamp, por iniciativa própria, acrescentou o dado quando os peritos que começavam a contestá-lo – a contestação começou pelas páginas da imprensa. Ao fazer o adendo, ele corrigiu uma falha do primeiro laudo, falha admitida por ele na CPI, na Polícia Federal e aos Ministérios Públicos federal e de Alagoas. Falha, é bom que se diga, que não prejudicava em nada as conclusão de que Suzana matou PC e se suicidou em seguida. Afinal, nos exames de trajetória da bala, a altura de Suzana já estava expressa: 1,67 metro. Só não estava registrada nos dados introdutórios. A ausência desse dado é um caminho para explicar por que os responsáveis pela segunda perícia tentaram desconstruir o laudo de Badan a partir da informação sobre a altura de Suzana. Viram ali uma falha e caíram de pau, desprezando até a medida de 1,67 metro que Daniel Muñoz encontrou ao abrir a tampa do caixão de Suzana.


Magalhães indaga:




‘Inexistem no processo questionamentos sobre a compra, por Suzana, da arma que matou a ela e PC. Por que Joaquim de Carvalho omitiu em seu livro a versão da irmã de Suzana, Ana Luiza Marcolino, de que a namorada de PC estava sendo seguida por ordens de Augusto Farias? Mesmo se for questionada, a versão não merece nem ser citada?’


Resposta: se Suzana estava sendo seguida por ordem de Augusto, por que não procurou a polícia? O endereço da delegacia ela conhecia: duas semanas antes de se suicidar, esteve lá, com uma prima, para registrar uma ocorrência falsa. Disse que perdera o talão de cheques. Com a declaração, evitou que o cheque usado na compra de um carro fosse devolvido pelo Banco Rural. Suzana estava com dívida até o pescoço, porque a fonte secara: PC, já namorando Cláudia Dantas, deixara fazer os depósitos que costumavam ser regulares. Abandonada, ela não teria este um motivo para matar PC?


Sobre as declarações de Ana Luísa, um único comentário: a família exerce um direito legítimo ao tentar afastar da imagem de Suzana a pecha de assassina e suicida. Afinal, não é fácil conviver com a dura realidade: uma moça, de 26 anos, mata o ex-namorado e se mata. Onde houve o erro? Tem alguma relação com a educação (ou falta de) que ela recebeu? Não, definitivamente não é fácil.


História delirante


Pergunta o jornalista:




‘Poucas semanas após as mortes, a família de Suzana Marcolino se mudou. Passou anos morando escondida em outro Estado, com medo de novas mortes. Por que Carvalho silenciou sobre o destino da família de Suzana? Se foi uma encenação, não seria o caso de contar?’


Resposta: não considero ético explorar a dor da família, para sustentar esta ou aquela versão. Para mim, saltavam aos olhos as evidências de que o caso estava encerrado. O que sobreveio é o caso do oportunismo de determinados jornalistas. E faço um breve comentário: tenho para mim que Mário Magalhães mergulhou tão fundo no objetivo de desconstruir a reportagem que publiquei na revista Veja que abusou na capacidade de manipular meias verdades. Recebeu acriticamente o laudo de um foneticista que legitimou as fotografias que ele encontrou – certamente com a família de Suzana. Foi fundo e não pôde mais recuar. Agora exagera no expediente de desqualificar quem o desmascara.


Aos fatos: Badan Palhares comparece à CPI do Narcotráfico na condição de suspeito. Foi a primeira oportunidade ele teve de falar sem que um jornalista editasse suas respostas. Prestou todas as informações solicitadas pelos parlamentares. Saiu de lá elogiado. Antes, vítima do clima de macartismo criado pelo sensacionalismo da imprensa, esteve até ameaçado de prisão. Para não correr o risco de perder a liberdade, obteve habeas corpus preventivo no Supremo Tribunal Federal. Depois, os parlamentares se renderam: ‘Foi um show de Badan’, disseram alguns. Jornalistas decentes se renderam: foi mesmo um show. Mas Magalhães persistiu. Disse que o show fora resultado da incapacidade dos parlamentares de fazerem as perguntas certas.


Eu tenho uma imagem da sessão da CPI em que Robson Tuma e Magalhães conversam enquanto Badan dá explicações. Parecem bem próximos. Por que não soprou as perguntas que considerava pertinentes? Ou será que soprou e Robson Tuma não as formulou? Outra hipótese: Magalhães ditou as perguntas, Tuma fez, Badan respondeu e Magalhães as desconsiderou. Só Magalhães pode responder. O fato é que, para não ficar no papel de linchador irresponsável, conseguiu uma página da Folha para desqualificar a CPI. O jornalista usou o mesmo recurso quando o vice-procurador-geral da República arquivou o caso. Ele não estudou direito os autos. Sei mais do que ele. Além disso, trabalha como Brindeiro, o ‘engavetador-geral’. Agora, quando publico um livro, vale-se do mesmo ardil: meias verdades, meias palavras e pontos de interrogação. Quer me desqualificar.


Confiram, leitores, a atitude dele quando esse caso definitivamente estiver sepultado, porque é certo que estará. A história da conspiração é um delírio e, felizmente, a sociedade dispõe de autoridades com mais responsabilidade do que jornalistas como Magalhães. Ainda não chegamos à era profetizada por George Orwell em 1984, em que as palavras ganham sentido contrário. Ainda não temos o Ministério da Verdade, apesar dos esforços de alguns ministros. Ainda não falamos a Novilíngua.


Cadáver insepulto


Magalhães pergunta por que não citei em Basta! a história do jornalista Baía, grampeado numa conversa com o delegado Antônio Carlos – graças à dinâmica da língua, grampeado ganhou um sentido diferente daquele registrado por Magalhães. Não se refere só à interceptação feita por uma terceira pessoa. Quando alguém diz que foi grampeado, está querendo dizer que teve sua conversa gravada. Pergunte aos políticos e a policiais se não é este o entendimento corrente. Não importa. Reafirmo que não fiz referência ao caso porque a conversa não tem pé nem cabeça. E sabe quem diz isso? O Ministério Público de Alagoas, instituição a que Magalhães rende homenagens (ainda que implícitas).


O Ministério Público de Alagoas mandou arquivar o inquérito por suposta corrupção. Há seis anos, a imprensa deu à conversa interpretação conveniente para a teoria da conspiração. Era uma tentativa de suborno por parte de Baía, jornalista ligado a Augusto Farias. Ganhou páginas de jornais, preciosos minutos da televisão, expôs inocentes. Mário Magalhães, que não considera o caso PC encerrado, poderia dizer em que jornal publicou a notícia do arquivamento do inquérito.


Num ponto, eu concordo com Mário Magalhães: revisitar a cobertura das mortes de Paulo César Farias e Suzana Marcolino tem sentido porque a reafirma a velha lição de que o passado ensina a driblar erros e a repetir acertos. Em plena crise de mensalão e CPI dos Correios, a mídia assume papel relevante, mas está muito aquém do que pode produzir. A fita revelada pela revista Veja é um exemplo. O conteúdo não revela a prática de crime, exceto um: o de calúnia. O funcionário flagrado discorre sobre a influência de Roberto Jefferson nos Correios e insinua que ele se beneficia de fraude a licitações. Isso é calúnia, porque não se demonstra na fita de que forma Jefferson se beneficia. No entanto, a fita produziu um barulho imenso, porque a imagem de um funcionário público embolsando 3 mil reais impressiona.


Imagem impressiona sempre. Mas, afinal de contas, ele recebe o dinheiro para quê? A fita não diz, e as reportagens que se seguiram ainda não oferecem essa resposta. Tem muita fumaça: a Abin estaria por trás da fita, a Casa Civil também teria seus interesses, Roberto Jefferson, o Brasil sabe, não é flor que se cheire. Com esses ingredientes, o escândalo explodiu. Mas ainda falta a reportagem para contar o que aconteceu, por que aconteceu, como aconteceu. A velha lição do lead. Roberto Jefferson reagiu com entrevistas e incendiou o jornalismo de declaração. Mas ainda falta a reportagem de qualidade, que prescinde do declaratório. Nosso empenho agora é fazê-la.


Sob o ponto de vista policial, o Caso PC é um cadáver. Cadáver insepulto, é verdade. Não há revelações importantes que poderão sair do caso. Por esse prisma, o caso se encerrou e agora tem relevância apenas para as aulas de ética nas faculdades de Jornalismo.

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Jornalista