Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A queima do arquivo

Dois dias depois de o governador Sérgio Cabral afirmar – no “Forum de Líderes do Setor Público da América Latina e Caribe – Inspirando a Próxima Geração de Líderes Governamentais”, promovido pela Microsoft, em Washington – que o Rio de Janeiro será o primeiro estado digital do Brasil, Wellington Menezes de Oliveira, um perito conhecedor das possibilidades de uso e probabilidades de ruptura do universo digital, invade a Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, mata 12 crianças e fere outras 12, a sangue frio.

Após o desfecho, a perícia vistoria a casa do assassino e sai de lá arrastando a CPU carbonizada. Uma queima de arquivo sem metáfora. Com a destruição do HD do seu micro, Wellington sepultou com ele senha, nick, enfim, chaves que lhe permitiam acesso e interatividade num mundo onde as relações são limpas, sem cheiros, sangue ou secreções; um mundo em que as comunidades globais são muito mais interessantes e, claro, sociáveis, que a comunidade local da proletária e suburbana de Realengo, onde vivia.

O que me faz lincar a fala ufanista do governador Sérgio Cabral ao crime praticado por Wellington Menezes de Oliveira não é apenas a proximidade das datas. O projeto de instrumentalização digital da juventude celebrada pelo governador está numa das extremidades da linha que o assassino de Realengo já havia percorrido e dela, repito, conhecia todas as possibilidades de uso e probabilidades de ruptura. Aos 23 anos de idade, Wellington pertencia à geração www.com, à qual foram disponibilizados os primeiros projetos de inclusão digital, mas aos quais nunca foram vinculadas ações intergeracionais. Basta comparar a disparidade entre os serviços, ainda oferecidos pelo poder público aos jovens e aos seus pais ou mantenedores: para as crianças e jovens, a network; para os da terceira idade, dança sênior, artesanato, alongamentos e aeróbica nas pracinhas do bairro, enfim, conhecimentos e práticas que, ao invés de promover e otimizar as relações e o diálogo dentro de casa, individualizam seus cultores, pois não possuem pontos de interesse ou de contato comuns. Resultado: a falta de diálogo intergeracional gera criaturas solitárias e dominadoras como Wellington.

A democratização da informação

Sou de uma geração educada pela televisão, considerada um monstro que invadia a sala de jantar, e tínhamos a obrigação de decifrá-lo. Mas ali ao lado tínhamos nossos irmãos, pais, tias, avós, dispostos a discutir o que viam e esticar o bate-papo sobre uma cena de filme ou novela durante semanas. Embora promovesse o diálogo, ainda assim a TV era vilã; embora o acesso ao seu universo fosse coletivo, sem a necessidade de senha individual, de se esconder no escurinho do cafofo para praticar mistérios (realidade em que a geração www.comvive sem culpas e com absoluto domínio), ainda assim ela era o mito na sala de jantar.

O mundo digital, quando a família não se qualifica com o mesmo grau de conhecimento para explorá-lo, é autista, egoísta, cruel, perigoso. Nesse caso, o computador é um cofre onde se escondem beijos ou bombas e quem possui um mínimo de instrução para operá-lo é posto ou se põe acima do bem e do mal. Que reflitam sobre isto os governos que democratizam o wi-fi como quem joga milho aos pombos; que reflitam sobre isto os papais e as mamães que vibram com os filhos diante da tela de um PC; que os recebem em casa como heróis-exploradores, pois aprenderam a acessar uma window, perdão, janela, muito antes de a abrir a página de um livro. O quadro fica ainda mais críticos quando esses papais e mamães revelam que vão arrochar o orçamento para comprar um computador, mas querem ficar o máximo que puderem longe dele. “Não sei nem onde liga aquilo.” É como justificam a falta de chance que não tiveram para usufruir da democratização da informação e compartilhar a experiência com os filhos.

A caixa-preta de nossos medos

“Toda essa tecnologia convoca um tipo de educação para a diversidade, portanto, um outro tipo de leitura do mundo. Ser contra a tecnologia é burrice, pois isso é um produto dos homens. A grande tarefa, hoje, é encontrar e desenvolver as formas de iniciar os estudantes nessas novas formas de leitura.” Uso este trecho de uma entrevista do jornalista e sociólogo Muniz Sodré, concedida em 15 de outubro do ano passado ao Suplemento do Professor da Folha Dirigida, para mostrar minha simpatia pelos projetos que abrem janelas para o futuro, desde que toda a família possa olhar através delas. É um bem social, capaz de fazer com que a taxa de analfabetismo de adultos no país (tanto do bêabá quanto da net) deixe de ser um insulto à cidadania. Quem chama a atenção para isto é Vincent Defourny, representante, no Brasil, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Na mesma edição da Folha Dirigida, Defourny se baseou na última Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD) do IBGE, que contabilizou cerca de 14,1 milhões de analfabetos com mais de 15 anos de idade, uma taxa de 9,7%, para receitar: “Muitos dos alfabetizados em programas de curto prazo tornam-se analfabetos rapidamente. Então, o que falta no país para manter os jovens e adultos alfabetizados é um entorno de leitura.”

Das imagens recentes dos desacertos e derrocadas do Rio de Janeiro, como a fuga dos traficantes pés de chinelo do Complexo do Alemão; o bota-abaixo provocado pela chuva na região serrana e a explosão do bueiro em Copacabana, a queima do HD do assassino responsável pelo massacre em Realengo é a mais chocante. Ela nos coloca diante do inevitável: o futuro. É incômoda, complexa e está fora, à margem das ações de sanitarismo policial-turístico do estado. O episódio de Realengo é educacional e o fato de ter ocorrido dentro de uma escola confirma o argumento de que aquele HD é a caixa-preta onde se ocultam nossos medos, mas também abre nossas consciências para os debates de novas possibilidades.

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Escritor, jornalista e autor-roteirista da TVBrasil