Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A voz dissonante do jornalista

A coluna Sete Dias, de Augusto Nunes, Jornal do Brasil (18 julho), dá um puxão de orelhas no presidente Lula. Como este Observatório está atento ao que se passa na imprensa, este escritor leu, releu e só não tresleu o artigo porque, como ensinou seu xará Augusto Meyer em ensaio sobre Machado de Assis, tresler é ler por cima, apressadamente. Minha conclusão: uma aula de Jornalismo. Poderia integrar-se a um Manual de Pronto-Socorro da Imprensa.

Gosto da conversa clara. Augusto Nunes é meu querido amigo. Foi ele quem me levou para escrever em Zero Hora, em Época, no Jornal do Brasil. Já era seu leitor e fã quando, em Gramado, no interior do Rio Grande do Sul, sem que nos conhecêssemos, ele, à mesa de um debate de que participava também Maurício Sirotsky, disse a seu patrão em Zero Hora, a propósito da intervenção que eu fazia, anônimo, no meio do público: ‘Não foi isso que ele disse, acho que o senhor não entendeu’. Na universidade vi mais o contrário: diante do superior, a instância imediatamente abaixo se acovardar. Ora, o jornalista dizia ao patrão que ele estava enganado.

Anos depois, diante de uma platéia de mais de 4 mil pessoas, nas Jornadas de Literatura de Passo Fundo, em mesa que eu coordenava, ele contou direitinho, pondo-se à disposição das perguntas do público, as razões de ter deixado a direção de redação de Época.

Paciência, muita paciência

Vou elogiar sua nova aula de domingo passado. Não por ser seu amigo, mas por tratar-se de texto que reputo importante, que merece destaque e comentário. Portanto, quem não quiser tomar conhecimento de minha opinião, é só parar aqui e ler os outros artigos. Talvez a imprensa semelhe a universidade, que raramente suporta o talento, o que levou o jurista Modesto Carvalhosa a cunhar uma definição memorável: ‘A universidade é um círculo de pequenas perversidades’. Ambos bebíamos vinho na Fazenda Pinhal e já não lembro se ele disse ‘círculo’ ou ‘circo’. A conferir. Ou talvez devemos concluir outra coisa: que todas as instituições, como nos ensina Michel Foucault, se parecem.

A lição é a seguinte. Augusto Nunes constata que ‘o presidente Lula da Silva deu de infiltrar, em seus tantos discursos, um pedido e uma queixa’. O presidente acha que os jornalistas padecem de ‘denuncismo’. E pede paciência à população.

Escreve o jornalista:

‘Os sintomas da moléstia incluem a mania de destruir reputações, arruinar imagens federais, atrapalhar a vida do governo – começando pela do chefe, claro. Coube-lhe uma herança maldita. Em 18 meses, pôs muita coisa nos eixos. É o começo: vem mais por aí. Não custa esperar’.

E continua: ‘O que não tem faltado à platéia nacional é paciência, muita paciência. Também sobram sinais de boa vontade emitidos pela imprensa. O problema é que a Lula tampouco faltam sabujos’. Esses estariam sempre a postos para ‘diga a bobagem que disser, cometa a gafe que cometer, tudo lhe será perdoado’. Augusto conclui que ‘chegou a hora de revogar essa esperteza forjada pelo paternalismo pegajoso, pelo etilismo velhaco’.

Armadilhas do inconsciente

E por que teria soado esta hora para o presidente Lula?

‘Como milhões de brasileiros, Lula conheceu uma infância sofrida, soube o que é passar fome. Mas é um vitorioso. Incorporou-se à classe média há muitos anos. Livrou-se do trabalho pesado faz tempo. Hoje presidente da República, enfrenta uma agenda mansa. Deveria falar menos e estudar mais. E a indulgência tem de acabar’.

Augusto conclui seus argumentos com uma comparação. O presidente Ronald Reagan, visitando o Brasil em 1982, saudou os brasileiros como ‘povo da Bolívia’. Estava em Brasília, não em La Paz. Talvez a falta de memória já desse os primeiros sinais. E recentemente o presidente Lula, falando a 600 empresários em Nova York, errou feio na questão de nossas fronteiras. Citar a Bolívia deu um azar danado aos dois presidentes, com a diferença de 22 anos. Ontem, Ronald Reagan. E agora, Lula.

Em sua crítica, Augusto diz que o presidente Lula ‘revogou uma vizinhança que se estende por 3.423 km. As divisas com a Bolívia tangenciam quatro estados, dois dos quais governados por companheiros do PT. Nem seriam necessárias aulas de geopolítica para assimilar tais banalidades. Lula tem memória boa. Um bom mapa teria evitado o vexame, que a maioria dos jornalistas preferiu ignorar’.

O fecho de seu artigo fixa com clareza o problema: ‘A maioria dos jornalistas preferiu ignorar’. Ora, isto é muito grave. Porque se os jornalistas preferem ignorar eles sonegam informação ao distinto público. O tropeço do presidente deveria ser informado. A seguir, inevitáveis desdobramentos poderiam trazer artigos muito pertinentes. Por exemplo: o que se ensina de Geografia nas escolas? Por que é importante saber com quantos países fazemos fronteiras? Em passado recente, o Brasil, de tríplice fronteira em alguns lugares, enseja que tais localidades sirvam de valhacouto e refúgio a ilicitudes.

Para mim, que sou contista e romancista, e gosto de deixar solta a louca da casa, como definiu Teresa d’Ávila a imaginação, essas armadilhas do inconsciente me agradam por aquilo que ele quer dizer e não o deixam, a começar pelo consciente ditador, que vive dando pinochetaços no pobre coitado: o presidente Lula quer esquecer que o Brasil faz fronteira com a Bolívia? Em caso afirmativo, por quê? Poderíamos solicitar interpretações a psicanalistas lacanianos, procurando, entre eles, aqueles que, como Betty Milan, escrevam de um modo que entendemos, porque nessa seara as trevas do texto parecem atestar qualidade aos autores. E a romancista e psicanalista Betty Milan escreve com atordoante simplicidade sobre temas complexos.

Quem está na chuva…

Jamais pude ensinar qualquer coisa a Augusto Nunes. Faltam-me credenciais. Mas se fosse seu professor e ele apresentasse seu texto como redação, a nota seria 10. Pelo texto. Ao eventual aluno daria nota acima de 10. É um dos poucos que vive proclamando que os jornalistas escreveriam melhor se lessem os escritores brasileiros. Mas sabemos que entre eles muitos evitam o autor nacional.

Não deveriam. Fazer o quê? Faltaram-lhes professores, que não faltaram a Augusto Nunes, que os aproximassem da literatura brasileira? Provavelmente. Pois professor sempre faz falta. Fez falta ao escritor Sérgio Sant’Anna, de quem sou leitor de carteirinha (seu Confissões de Manfredo Rangel repórter é um dos mais belos contos que li na vida, e eu li e leio muito, e por gosto e dever de ofício ensinei e pesquisei literatura brasileira contemporânea por décadas), quando falou mal de Machado de Assis no recente Festival de Paraty, no interior do Rio. E faltou ao jornalista Cassiano Elek Machado, que na Folha de S. Paulo, como tantos outros, aliás, referiu-se a Patrícia Galvão como ‘musa do modernismo’, reiterando uma bobagem repetida há décadas. Patrícia Galvão nasceu em 1910. Musa aos 12 anos?

Paremos por aqui, mas há outros exemplos que Moacir Japiassu – que, aliás, já me puxou as orelhas aqui neste Observatório e nem por isso é menos amigo, afinal quem está na chuva é para se molhar – pode desencavar num átimo de seus guardados. E quem escreve romances como Moacir Japiassu pode ser perdoado de tudo, abençoado ou exorcizado, conforme o caso.