Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A cobertura da violência

Uma onda de violência com diferentes motivações espalha-se pelo país. Conflitos com as forças de segurança pública têm dominado as manchetes dos jornais. Há pouco mais de uma semana, a morte de um adolescente por um policial elevou a temperatura na Zona Norte de São Paulo. Moradores da região interditaram a rodovia Fernão Dias e lojas foram saqueadas. Há denúncias de que o narcotráfico estaria por trás de ações violentas na região. Os protestos pacíficos que reuniam milhares de brasileiros tornaram-se confronto direto entre uma minoria e as forças de segurança pública. Após uma manifestação convocada pelo Movimento Passe Livre em São Paulo, o coronel Reynaldo Rossi, da Polícia Militar, foi agredido com socos e pontapés. Até mesmo uma chapa de metal foi usada na agressão. Socorrido por seu motorista, o coronel pediu calma à tropa. O Terminal D.Pedro II ficou completamente destruído.

A presidente Dilma Rousseff repudiou a violência nas manifestações e classificou os atos de vandalismo como “fascismo” e “barbárie” antidemocrática que precisam ser coibidos pelo poder Executivo. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, anunciou que os setores de inteligência das polícias do Rio e de São Paulo vão atuar em conjunto para investigar os grupos responsáveis pelas depredações e agressões nos atos de protesto dos últimos meses. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (05/11) pela TV Brasil discutiu como as forças de segurança e os meios de comunicação se posicionam diante dos fenômenos de violência.

Para debater este tema, Alberto Dines recebeu no estúdio de São Paulo o tenente-coronel reformado Adilson Paes de Souza e o desembargador Wálter Maierovitch. Paes de Souza é mestre em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP) e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Foi finalista do prêmio USP de Direitos Humanos. Maierovitch é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Fundou e preside o Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais e foi secretário Nacional Anti-drogas da presidência da República. Em Brasília, o programa contou com a presença de João Bosco Rabello, que é colunista do jornal O Estado de S.Paulo e da Agência Estado. Rabello também trabalhou no Correio Braziliense, no Jornal do Brasil e em O Globo e foi diretor da sucursal de O Estado de S.Paulo em Brasília.

Respostas urgentes

Em editorial, Dines ressaltou que a presidente Dilma foi veemente ao criticar os atos de vandalismo. “A um ano das eleições presidenciais, esta turbulência corre o risco de agravar-se. Por outro lado, a nova dimensão dos conflitos de rua desvenda uma sucessão de problemas crônicos no tocante à violência e segurança. Numa democracia, a truculência não se combate com truculência. Mas, se o Estado e a sociedade não exibem um mínimo de determinação, tudo desanda. No entanto, se a população vai à rua para protestar é porque não tem outros canais para se manifestar, não tem a quem recorrer. Não estamos à beira de um vulcão, nem corremos o risco de terremotos ou tsunamis. Mas convém não enfiar a cabeça na areia e fingir que nada está acontecendo”, advertiu Dines.

A reportagem exibida antes do debate ao vivo entrevistou Michel Misse, professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para o sociólogo, uma parte dos manifestantes recorre à violência para chamar a atenção. “Eles não estão recorrendo à violência para fins privados, mas para fins políticos. E essa é uma distinção muito importante que se faz no mundo inteiro entre a violência para fins privados, que é o crime, e a violência para fins políticos, que vai buscar legitimidade. O que há em comum é a polícia. É a única forma em comum que está presente nessas diferentes manifestações. Portanto, a meu ver, é preciso que se pense, que se reflita o papel da polícia no controle ou, pelo contrário, no estímulo à forma como essas manifestações vêm ocorrendo”, analisou.

Misse acredita que o argumento segundo o qual na democracia não se pode usar de recursos de força é falho porque a desobediência civil é um traço da democracia. “Evidentemente tem um custo, evidentemente incorre em crimes, sem dúvida nenhuma, mas é algo que ocorre em todos os países democráticos. É preciso um certo equilíbrio no tratamento dessas questões que eu não tenho visto na imprensa brasileira. Há uma ânsia em criminalizar esses grupos que são grupos pequenos, são grupos que não chegam, efetivamente, a constituir um perigo à ordem democrática”, comentou o professor.

Diálogo inexistente

Renato Sérgio de Lima, representante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, acredita que as manifestações, hoje, revelam um profundo estranhamento entre governos, polícias e sociedade. “A violência em algum momento passou a ser o tom das manifestações, tanto da reação das polícias como da parte dos manifestantes”, ressaltou, lembrando que o principal desafio é avaliar como é possível evitar que a violência seja a tônica. Para Renato Sérgio, é preciso pensar em “como desfazer esse estranhamento entre sociedade e governo”.

“A violência é hoje um problema sério não só nas manifestações, mas na sociedade brasileira e, sem dúvida, para que a gente consiga reduzir esse estranhamento e avançar numa agenda de reforma das instituições de segurança, para que nós as tornemos mais eficientes, mais garantidoras de paz e tranquilidade, enfim, que a gente consiga reduzir o medo, insegurança e o crime, tem toda uma tarefa pela frente, que é exatamente a tarefa de sentarmos, conversarmos com diferentes esferas de governo, governo federal, governos dos estados, dos municípios, em especial com o Congresso. A gente também não pode ficar esperando que as reformas aconteçam, a gente precisa modernizar a gestão das políticas de segurança”, propôs o representante do fórum. Ele acredita que, ao aliar prioridade política de gestão a reformas estruturais, as estatísticas de violência vão cair.

Fernando Lattman-Weltman, sociólogo e cientista político da Fundação Getúlio Vargas, ponderou que a violência é frequente na história do país: “Saques, ações violentas, reação à violência policial, ao abuso de poder, isso infelizmente está na nossa história, há vários exemplos datados sobre isso. Não tem nenhuma novidade aí. O fato de que a violência às vezes se mistura com questões de ordem política e com questões de ordem pura e simplesmente criminal não é nenhuma novidade, isso também já aconteceu várias vezes e infelizmente vai continuar acontecendo”. Na avaliação de Lattman-Weltman, há um “efeito demonstração” quando vários movimentos com forma de ação parecidos ocorrem com pouco tempo de diferença. “Alguém toma consciência que é possível determinado tipo de prática, de manifestação e, por qualquer motivo, qualquer motivação, diz: ‘eu também posso fazer isso’”.

Mídia cega?

O escritor João Paulo Cuenca criticou a violência policial e a pouca atenção que a mídia dá ao fato. “Quando acontece alguma coisa como essa em Jaçanã, que matam um garoto de 17 anos e as pessoas ocupam a rodovia da cidade para protestar, isso só vira notícia porque fecham o trânsito. Você vê a matéria no jornal e na televisão e eles vão ficar falando dez minutos sobre o trânsito, dez do ônibus que queimaram, dez sobre as providências que a PM vai fazer, vai continuar aterrorizando aquela população, e o fato do garoto inocente que morreu fica no cantinho. É uma questão de edição do que tem peso e do que não tem peso. E de contar a ordem causal. São inúmeras as manifestações em que as pessoas só começam a quebrar as coisas depois de apanharem da polícia. No dia seguinte, a edição é ao contrário. Parece que as pessoas quebraram as coisas e depois apanharam da polícia”, relatou o escritor.

No debate ao vivo, Dines comentou que a entrevista que o tenente-coronel reformado Adilson Paes de Souza concedeu à Folha de S. Paulo no fim de semana gerou polêmica. Nela, o tenente-coronel defendia os Direitos Humanos, criticava a polícia e o sistema. Para ele, a população não tem outros canais para se expressar e, por isso, as manifestações com atos de vandalismo têm sido frequentes. Ele afirmou que segue a teoria de que não há movimentos espontâneos, mesmo quando a pauta de reivindicações dos movimentos é difusa.

“Nós temos que avaliar o contexto em que surgiram essas manifestações e o contexto em que se tornaram violentas. Em nenhum momento nós devemos justificar o uso da violência como meio legítimo de fazer valer qualquer pretensão. Isso vale para os manifestantes e também para as forças que representam o Estado”, propôs Paes de Souza. O entrevistado ressaltou que as três esferas do Estado brasileiro são criticadas, inclusive no âmbito internacional, quanto à ação de agentes públicos. Por outro lado, parte dos manifestantes escolhe a violência para expressar sua opinião. “Há um distanciamento entre o palácio e a praça, ambos essenciais para a vida democrática. Nos parece que o palácio não está ouvindo os clamores da praça e a praça não está se vendo representada pelo palácio. Isso é perigoso”, advertiu.

Menos paixão, mais ação

Para ele, é preciso construir canais de diálogo entre sociedade e governo urgentemente. O entrevistado ressaltou que toda intervenção policial e estatal deve ter como objetivo a mediação de conflitos de forma pacífica, como está previsto na Constituição Federal. Neste momento, é fundamental que Estado e sociedade reflitam sobre seus erros para poder avançar. “Somente um diálogo franco e aberto poderá levar a uma solução para o problema”, sublinhou o tenente-coronel. Em um momento como este pelo qual passa o Brasil, com “paixões” exacerbadas, as discussões acabam infrutíferas e as soluções adequadas são postergadas. Paes de Souza comentou que uma pesquisa realizada no primeiro trimestre do ano mostra que o grau de confiança da sociedade na Justiça brasileira despencou para 23%. Os pesquisadores envolvidos no estudo asseguraram que o dado já mostrava uma instabilidade. Logo depois surgiram as manifestações contra a atuação do Estado, incluindo a ação da polícia.

O desembargador Wálter Maierovitch ponderou que as forças de segurança pública no Brasil não foram educadas para conviver com legalidade democrática e que o caminho para que isto aconteça é longo. Por outro lado, o sistema penal brasileiro é anacrônico, com a possibilidade de muitos recursos, o que leva à falta de respostas para as demandas da sociedade. A polícia truculenta gera medo na população. “Nós precisamos mudar absolutamente tudo e, inclusive, tirar essa adjetivação de polícia ‘militar’. Nós temos uma polícia que deve ser para a garantia de uma paz social dentro da legalidade”, sugeriu o desembargador.

Maierovitch rebateu o argumento de que a tática Black Block é nova e, por isso, o poder público ainda não sabe como controlá-la. Ele lembrou que as primeiras ações com esse perfil surgiram na Europa nos anos 1980. “O BB não mais é só uma tática, como se diz e quer dourar a pílula. É simplesmente uma organização parasitária porque gruda em movimentos outros e pacíficos. Na marcha, se desloca para quebrar e atuar de surpresa”, disse. O entrevistado afirmou que, na Itália e na Espanha, a legislação é muito mais rigorosa do que a brasileira para coibir a atuação dos Black Blocs. Nestes países, a tática é enquadrada como terrorismo. Maierovitch defendeu mudanças rápidas e efetivas para inibir os Black Blocs e contra o tráfico que se infiltra em manifestações.

Os protestos na pauta eleitoral

Para o jornalista João Bosco Rabello, se não houver desmobilização dos grupos mais violentos, distúrbios sociais ainda mais graves podem ocorrer. “Todos os atores políticos já estão orientados eleitoralmente. O comportamento deles agora é ditado pela conveniência eleitoral. Isso desde o governo. É extensivo aos partidos políticos, às próprias personagens, deputados, senadores. E é por isso que eles têm uma certa cautela em relação ao assunto, porque não sabem, também, como enfrentá-lo”, analisou. Rabello destacou que o pronunciamento da presidente sobre a necessidade de punir atos de vandalismo foi dirigido às pessoas que condenam a violência nos protestos. Enquanto isso, o secretário-geral da presidência, Gilberto Carvalho, preferiu aproximar-se de alas da esquerda e dos movimentos sociais ao pedir mais diálogo com os Black Blocs.

O jornalista ponderou que parte das dificuldades da polícia em lidar com o movimento pode estar ligada ao fato de que a logística destes eventos é inédita no Brasil. Sem conseguir localizar e monitorar os grupos, a polícia fica restrita à batalha nas ruas. “Está faltando um trabalho de inteligência, de investigação que preceda as ações de campo para identificar realmente os participantes da violência e chegar onde esta articulação está”, definiu Rabello, ressaltando que tem dúvidas se até as eleições haverá tempo para esta ação. 

 

O crescimento da violência

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 708, no ar em 5/11/2013

A presidente Dilma Rousseff escolheu palavras fortes, inequívocas. Primeiro classificou as depredações como “barbárie” e, no dia seguinte, para que não restasse alguma dúvida, foi adiante e designou os manifestantes que apelam para a violência como “fascistas”.

O fascismo é subversivo, confronta o Estado de direito. Em pouco mais de quatro meses as jornadas de junho mudaram de tamanho, intensidade e status: eram milhões nas ruas e agora a participação é de algumas dezenas de militantes, visivelmente treinados. Majoritariamente pacíficas no início, passaram a ser ameaçadoras. Justas e espontâneas na fase um, parecem orquestradas e infiltradas por facções criminosas na fase dois.

A um ano das eleições presidenciais, esta turbulência corre o risco de agravar-se. Por outro lado, a nova dimensão dos conflitos de rua desvenda uma sucessão de problemas crônicos no tocante à violência e segurança.

Numa democracia, a truculência não se combate com truculência. Mas se o Estado e a sociedade não exibem um mínimo de determinação, tudo desanda. No entanto, se a população vai à rua para protestar é porque não tem outros canais para se manifestar, não tem a quem recorrer.

Não estamos à beira de um vulcão, nem corremos o risco de terremotos ou tsunamis. Mas convém não enfiar a cabeça na areia e fingir que nada está acontecendo. Esta edição do Observatório da Imprensa é a prova de que algo se move.

 

A mídia na semana

>> A regulação da mídia começou a ser implementada ao mesmo tempo em dois países antípodas e adversários, quase beligerantes: Inglaterra e Argentina. No Reino Unido, a rainha Elizabeth 2ª assinou uma Carta Real criando a comissão com poderes para fiscalizar e punir os erros de conduta dos jornais e revistas. O revolucionário projeto é fruto da comissão de inquérito presidida pelo juiz Leveson e apoiada pelos três maiores partidos. As grandes empresas jornalísticas tentaram embargar a promulgação do documento real, não conseguiram, mas os jornalistas profissionais o apoiam. Começa um novo capítulo na história da imprensa inglesa no mesmo dia em que a promotoria começou as acusações contra a direção do conglomerado de Murdoch pelos abusos cometidos por seus repórteres.

>> Na Argentina, a Corte Suprema considerou constitucional a nova lei da mídia proposta pelo governo Kirchner e assim ganha força a pressão sobre o poderoso Grupo Clarín para desfazer-se de parte do seu império. A ideia de desconcentrar a mídia na Argentina é teoricamente legítima, mas a forma com que o governo tenta implementá-la revela uma clara intenção de esvaziar os grupos jornalísticos de oposição em benefício daqueles favoráveis ao peronismo. A transferência de concessões audiovisuais para a igreja e sindicatos também tem sido vista como retrocesso democrático no momento em que a ideia do Estado laico ganha força em todo o mundo.

>> O deputado estadual Rui Falcão, presidente do PT, um dos maiores partidos do país, foi vítima de um arrastão num dos mais conhecidos restaurantes de Brasília. Garçons e fregueses foram obrigados a deitar-se no chão e o político ainda teve uma arma apontada para sua cabeça. O episódio ocorreu na terça-feira passada (29/10), foi noticiado discretamente na sexta na coluna política do Globo, mas reproduzido com enorme destaque no sábado (2/10) na edição internacional do diário espanhol El País. Mesmo assim, os jornais brasileiros não se animaram a tratar do assunto.

>> O Império X, o conglomerado de empresas do bilionário Eike Batista, começou a ser desmontado. A notícia teve enorme repercussão no exterior e não apenas junto ao mercado financeiro. Jornais e jornalistas brasileiros tentam jogar a culpa na política oficial de favorecer os “campeões”, mas ninguém quer lembrar-se do incensamento do empresário pela mídia brasileira. Com raras exceções, nossa imprensa extasiou-se diante da criatividade e das iniciativas daquele que prometia tornar-se o homem mais rico do mundo – para a alegria dos brasileiros. O comportamento algo paranoico de certas figuras da vida pública precisa ser examinado à luz da intensa exposição e bajulação a que são submetidas pela mídia. Quem atribui o toque de Midas é uma imprensa sequiosa para criar celebridades.

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Lilia Diniz é jornalista