Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A falsa tragédia de Santa Maria

Lamento, profundamente, pela vida de cada jovem que, para sempre, se foi, bem como por tantos outros que, em sobrevida, jamais, apagarão de suas memórias, o trauma. Sem saudosismo, eu me indago, por conta de dezenas de shows presenciados, ao longo de décadas de existência, se Caetano Veloso, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Milton Nascimento, João Bosco, Ivan Lins, dentre outros grandes nomes, algum desses, por ato inconsequente, provocou, em algum show, a morte de alguém… Não.

Os tempos mudaram. Hoje, pela pobreza musical do que se propaga, em âmbito nacional e internacional, não basta o show rítmico-musical. A pequenez de quem ocupa o palco precisa de outros atrativos. Aí, entram, em cena, vários agentes conspiradores contra a vida: proprietários negligentes, grupos musicais medíocres e público consumidor de qualidade limitada. No cenário de horrores de Santa Maria, há a reunião do que, no Brasil de hoje, temos de pior: comerciários em busca de qualquer lucro, artistas que têm público para o que há de mais medíocre e consumidores para tudo.

O que me move, nesta escrita, é um misto de lamento por tantos jovens que não mais existirão, além de ter a certeza de que outros mais perderão suas vidas, tragados pelo tsunami da ilusão desenfreada. Esse é o resultado de um modelo político que, há décadas, investe em injetar mais cédulas no bolso de população sem quase nada e, irresponsavelmente, nada cuidar do cérebro.

Fogos de artifício

O modelo brasileiro, há muito, fez a opção por cuidar do estômago e deixar de lado a oferta de conhecimento. Chegamos, pois, ao quadro esquizofrênico: barrigas expandidas e mentes encolhidas. Sei que muitos rebaterão a presente crítica. Não importa. Que venham as vozes detratoras, em nome de dados estatísticos que, em nada, alterarão as mortes de Santa Maria.

Autoridades públicas, cinicamente, vieram a público: confirmaram a irregularidade de funcionamento da casa de show Kiss (ou “Kill”). Quem são os órgãos responsáveis que, desde agosto, não interditaram o funcionamento do estabelecimento? Que respostas, esses órgãos têm a dar? A mídia, até agora, não fez a pressão devida. Por quê? Estranho, não é?

Sócios e dois músicos foram autuados. Correto. E nenhuma autoridade pública, conivente por omissão, negligência, ou corrupção foi, também, presa? Como? Sim, a morte de centenas e outras de feridos deixam muitas questões incômodas no ar. Que lástimas pela despedida que jovens iludidos deram à vida. Choro pela ida de cada um. Indignação por todos que colaboraram por mais um acontecimento que, em nome da alegria e da celebração, produziram o horror. Nada mais tenho a acrescentar. Não aceito viver num modelo que transforma o horror em paisagem de maquiagem. O Brasil, há muitas décadas, não passa de um paisagem iluminada por fogos de artifício. Nada aprendeu com as trevas criadas pela ditadura.

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[Ivo Lucchesi é ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)]