Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

A fidelidade que interessa

No momento em que o STF conclui o julgamento de três mandados de segurança apresentados por DEM, PPS e PSDB a fim de recuperar, para os suplentes, as cadeiras de deputados que migraram partidos da base aliada, a grande imprensa volta a se apresentar como avalista da cidadania. Única instância capaz de, ao preço da deslegitimação dos três poderes republicanos, impor uma agenda ‘moralizante’ e ‘modernizadora’. Cabe indagar qual tem sido o procedimento recente do campo jornalístico ao ver surgirem propostas de reforma no seu âmbito. Vale a pena um pequeno apanhado para ver os limites da sofreguidão mudancista quando a democracia ameaça interesses sedimentados. Dois casos ocorridos no primeiro mandato do governo Lula são por demais emblemáticos para não serem relembrados.

O primeiro deles foi o envio ao Congresso de um projeto de lei criando o Conselho Federal de Jornalismo. Ficou conhecido pelas reações que pouco contribuíram para o debate visando ao aperfeiçoamento democrático de nossas instituições. Do puro corporativismo de setores da mídia ao alarido udenista de seus intelectuais orgânicos, a proposta da Fenaj foi combatida por assertivas sofismáticas: estaria em curso um processo autoritário que, buscando ‘fiscalizar o exercício da profissão de jornalista e da atividade de jornalismo’, objetivava ameaçar a liberdade de imprensa e o direito do cidadão à livre informação. Até mesmo o procurador nacional antimáfia da Itália, Piero Luigi Vigna, que veio ao Brasil participar do Encontro Internacional de Combate à Lavagem de Dinheiro e Recuperação de Ativos se manifestou contrariamente, vendo na medida uma forma de controle eleitoral.

O segundo, igualmente bombardeado, foi o projeto de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) apresentado pelo Ministério da Cultura ao Conselho Superior de Cinema. Os arautos da imprensa atacaram-no pelo que ele tinha de modernizador buscando fomentar o setor com recursos públicos e privados.

Como destacou Orlando Senna, então secretário do Audiovisual do Minc ‘nossa democracia audiovisual é limitada: 90% dos municípios brasileiros não têm uma tela de cinema sequer, apenas 8% dos brasileiros podem arcar com os altos ingressos de um mercado cinematográfico concentrado e engessado e a televisão reserva um espaço mínimo para a participação da produção artística e da informação independentes. Estas censuras de mercado atingem a população brasileira’. Senna sabia que estava tocando em ponto nevrálgico.

Exercício projetivo

Foi o bastante para que Miriam Leitão, colunista de economia do Globo, sentenciasse: ‘No começo deste primeiro mandato, como todos se lembram, através da tentativa de criar o Conselho Federal de Jornalistas e da Ancinav, o governo quis controlar os meios de comunicação. Fracassou. Agora tenta de novo e chama a investida de `democratização dos meios de comunicação´. Durante os últimos quatro anos, o governo Lula criou jornais e revistas, achando que, assim, substituiria os órgãos de maior circulação. Não deu muito certo’. A jornalista parecia se postar como legítima ‘partisan’ de uma imprensa ameaçada.

Estávamos diante de constatações enganosas. Não se ameaça o que não existe. Quem quiser travar a boa luta deve ir à questão central: a estrutura oligopolizada e a propriedade cruzada dos meios de comunicação. Tangenciar esse ponto é trocar a substância pelo adjetivo fácil.

Era evidente que os projetos deviam ser aperfeiçoados, o que não significava demonizá-los. Mas para tal era, e continua sendo necessário, a remoção de premissas falsas da discussão. Historicamente, a imprensa brasileira nunca foi fiadora de qualquer processo democrático. Seu papel de intermediação entre Estado e sociedade civil existe apenas no campo do imaginário jornalístico. A inserção na política se dá em aliança com setores do universo conservador, quando não do reacionarismo mais deslavado, e grupos empresariais preocupados exclusivamente com uma lei: a do valor.

Essa coalizão de interesses sempre combateu movimentos sociais que tentaram ampliar a institucionalidade estabelecida em sucessivas transições por alto . O surgimento de um regime que ultrapassasse os mecanismos representativos do sistema político excludente e do ordenamento jurídico aparelhado sempre foi o pesadelo das elites. Sempre exorcizado em contundentes editoriais. Podemos correlacionar o funcionamento da imprensa com democracia no Brasil. Mas será um exercício projetivo de imaginação. Calcada na história recente, tal correlação não tem qualquer fundamentação empírica.

Princípios republicanos

Se remontarmos ao movimento político que, temendo as conseqüências da inserção de massas urbanas no jogo institucional, levou Getúlio ao suicídio, onde, com raríssimas exceções, encontraremos os grandes jornais da época? Aboletados na farsa que ficou conhecida como República do Galeão. Dez anos depois, mais que cúmplice, a mídia é protagonista do golpe militar. Primeiro como articuladora junto à opinião pública do arrazoado golpista. Posteriormente como legitimadora do regime que matou e torturou para zelar pelos interesses do grande capital. Esgotado o ciclo dos generais, a grande imprensa em geral, e a Rede Globo de forma particularíssima, se dedicaria a abortar a campanha das diretas-já. As demandas, saídas da panela de pressão do autoritarismo, davam um tom de imprevisibilidade ao processo político. Como lidar com o imponderável da práxis democrática?

Mais uma vez, era necessário conspirar, trair e sair com alguma legitimação política. Excetuando poucos veículos, o baronato da grande imprensa não se furtou, em nome dos próprios negócios, a prestar um último favor ao estamento que tanto o beneficiou em duas décadas.

Ao associarmos a grande imprensa ao que há de mais reacionário na história republicana do Brasil, não ignoramos o papel de vários profissionais que, em muitos casos, pagaram com a própria vida o preço de ter ido contra regimes que tinham sustentação simbólica da empresa em que trabalhavam. Nosso objetivo é tão-somente mostrar que não há estupradores autoritários à espreita de uma senhora virtuosa e democrática. Talvez o maior mérito da discussão envolvendo as propostas abortadas tenha sido o de mostrar a atividade jornalística sem ilusionismo. Como prática autoritária que não comporta a diversidade de informações e a pluralidade de opiniões.

Essa, sem dúvida, é a mãe de todas as reformas políticas. Democratizar o campo informativo em nome da fidelidade aos mais básicos princípios republicanos. Concentração midiática anda de mãos dadas com concentração fundiária e de riquezas. Eis o eixo a ser quebrado se queremos ampliar a democracia. Cabe recurso ao Supremo?

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Professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro