Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A mídia jornalística e o novo papa

A igreja católica tem um novo líder, o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio. Em poucos dias, o papa Francisco já deixou clara a sua opção pelos pobres, mostrou-se disposto a recuperar a credibilidade da igreja e a ter um diálogo mais próximo com a mídia. O primeiro papa jesuíta em dois mil anos tem o desafio de concretizar as proposições de renovação da igreja católica, feitas pelo papa Bento XVI ao anunciar a sua renúncia. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (19/3) pela TV Brasil discutiu a crise da igreja católica e o futuro da instituição, que vem perdendo fiéis a cada ano.

Bento XVI foi o primeiro papa a abdicar em seis séculos e seu gesto gerou inúmeras especulações na imprensa. Durante os oito anos de seu pontificado, enfrentou uma série de turbulências e a igreja esteve no centro de escândalos de pedofilia envolvendo padres de diversos países. Um grave vazamento de informações confidenciais, que ficou conhecido como Vatileaks, foi destaque na imprensa de todo o mundo. Em 300 páginas, os documentos revelariam uma rede de corrupção e prostituição homossexual na Santa Sé. O relatório sigiloso foi passado pelo mordomo do papa a um jornalista italiano, que publicou as denúncias em um livro. O texto do relatório, produzido por três cardeais a pedido de Bento XVI, será entregue ao papa Francisco.

Alberto Dines recebeu três convidados no estúdio do Rio de Janeiro: o teólogo Leonardo Boff e os jornalistas Luiz Paulo Horta e Ariel Palacios. Boff escreveu mais de 60 livros e foi professor em várias universidades no Brasil e no exterior. Um dos principais nomes da Teologia da Libertação, Boff foi condenado pelo Vaticano e impedido de exercer suas funções editoriais e de magistério. Anos depois, ameaçado de uma segunda punição, renunciou às suas atividades de padre. Luiz Paulo Horta é editor de Opinião e crítico musical do jornal O Globo.É integrante da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Arte. Participa da Comissão Cultural da Arquidiocese do Rio de Janeiro e dirigiu um grupo de estudos bíblicos no Centro Loyola da PUC-RJ. Ariel Palacios é correspondente da Globonews e de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires, onde vive há 17 anos.

Novos tempos para a igreja

Antes do debate no estúdio, em editorial, Dines sublinhou que a mídia internacional foi uma das protagonistas da renúncia de Bento XVI. “Apesar da legião de vaticanistas convocados pela mídia para explicar e antecipar os acontecimentos, a verdade é que a mídia não consegue satisfazer a sede de saber daqueles que querem algo mais denso do que os 140 caracteres de um tuite”, disse. Para Dines, a cobertura das transformações da igreja exige novos cânones de jornalismo. “Estes cânones foram expostos pelo próprio papa Francisco aos cerca de quatro mil jornalistas reunidos em Roma no sábado (16/3): buscar a verdade, a bondade e a beleza”.

O programa entrevistou especialistas em catolicismo. Juan Arias, correspondente do jornal El País no Brasil, cobriu o Vaticano por mais de três décadas. “Sem os meios de comunicação não teríamos conhecido nada dos problemas de pedofilia, dos escândalos do Vaticano, todas essas coisas. A igreja nunca teria [divulgado]. Hoje sabemos que ela escondia essas coisas”, ressaltou o jornalista. Um dos momentos mais importantes que Arias cobriu foi o Concílio Vaticano II, realizado nos anos 1960, quando foram aprovadas mudanças decisivas na doutrina da igreja. “Hoje seria importantíssimo que o novo papa, a primeira coisa que fizesse, fosse convocar um novo Concílio. Porque depois de 50 anos o mundo não é o mesmo e a igreja praticamente é a mesma”, disse Arias.

O padre Abimar Moraes, coordenador do curso de pós-graduação em Teologia da PUC-Rio, explicou que a Companhia de Jesus deteve um grande poder durante o período de colonização no Brasil: “Em Roma existiam dois papas. O ‘papa branco’, em referência à veste que o papa utilizava, que era justamente aquele que tinha sido eleito pelo conclave, e o ‘papa negro’, que era uma referência às vestes que os jesuítas naquela época usavam. Isso demonstrava que o ‘papa negro’ era o superior dos jesuítas. Não que houvesse oposição entre os dois, mas dava a medida da importância da Companhia de Jesus no cenário eclesial, cultural, daquela época”.

Para o padre Abimar de Moraes, do ponto de vista histórico, é possível afirmar que a igreja católica caminhou alguns passos na direção de uma convivência mais harmônica com a mídia “não só do ponto de vista da presença dela nos meios, mas muito mais da percepção que ela tem da importância, do papel, da função social da comunicação social”.

Futurologia nos jornais

O filósofo Renato Janine Ribeiro comentou as especulações em torno do passado do papa Francisco: “Existe uma obrigação da imprensa, uma obrigação ética fortíssima, de noticiar aquilo que os leitores têm necessidade de saber. Acho que a imprensa tem uma responsabilidade ética. Na hora em que a organização mais poderosa e antiga do mundo não consegue pautar a sua ação e é pautada por denúncias da imprensa, a coisa fica muito ruim”. O filósofo disse que a imprensa, de um modo geral, errou as previsões sobre o novo papa. “Afirmou que seria um papa mais jovem, afirmou que seria um papa de tal ou qual proveniência. Levantou de seis a dez papabili, que seriam os preferidos. E nem sequer noticiou que na eleição de 2005 o cardeal Bergoglio tinha sido o segundo mais votado”, criticou Janine.

Jorge Claudio Ribeiro, professor do departamento de Ciências da Religião da PUC-SP, disse que o papel da imprensa na investigação das denúncias de pedofilia envolvendo padres foi fundamental. O trabalho começou em Boston, em 2002, com a denúncia de jornalistas, muitos deles católicos. “Deixou de ser um problema interno da igreja, que poderia comprometer. Não se falava disso”, relatou o professor. O assunto ganhou importância e migrou para o âmbito secular.

A cientista política Roseli Fischmann explicou que na Argentina existe um regime de união entre o Estado e a igreja católica: “Na Constituição, logo no artigo 2º, vem a afirmação de que o Estado promove a Igreja Católica Apostólica Romana. Isso é um regime de união e embora outros dispositivos da Constituição garantam liberdade de crença, as outras religiões não estão em pé de igualdade. Existe uma prevalência da igreja católica, inclusive com benefícios financeiros aos religiosos”.

O papa dos pobres

No debate ao vivo, Alberto Dines ressaltou que esta sucessão papal, diferentemente das anteriores, tem um clima mais festivo porque não foi marcada pela morte do pontífice anterior. Ariel Palacios explicou que o Jorge Mario Bergoglio é conservador, mas aberto ao diálogo e moderado. O correspondente contou que em uma ocasião deparou-se com Bergoglio no centro de Buenos Aires poucos meses após o então cardeal ter recebido cerca de 40 votos no conclave que elegeu Bento XVI. “Começamos a conversar algo leve, sobre a sujeira da cidade, o calor. Perguntei: ‘Para onde o senhor vai?’ ‘Para o metrô’. Eu disse: ‘Eu o acompanho até o metrô’. E ele disse: ‘Não precisa’. Eu pensei: ‘Deve ter um carro que está esperando na esquina, onde tem a estação’. Não, ele se despediu e entrou na boca do metrô”, relembrou Palacios. Para o jornalista, a simplicidade do papa Francisco não é populismo, é uma austeridade natural.

Leonardo Boff contou que durante uma conversa com Bento XVI, o então papa o orientou a não conceder entrevistas à imprensa sob o argumento de que os jornais eram os maiores inimigos da igreja, porque sempre “falavam mal” da instituição. Como resposta, Boff teria dito que a mídia é considerada inimiga porque fala a verdade que a igreja não quer divulgar. Sobre a renúncia, Boff comentou que Joseph Ratzinger abdicou por falta de vigor espiritual. “A minha interpretação é que os dois eixos que sustentavam ideológica e teologicamente a visão dele colapsaram”, disse Boff.

O primeiro desses conceito é o de que a igreja católica deveria ser pura e santa. “De repente ele se deu conta de que essa pequena igreja está cheia de pedófilos, cheia de ladrões de beira de estrada, de carreiristas e que esse modelo não funciona”, afirmou o teólogo. O segundo eixo é a tese de que, fora da igreja católica, não há salvação. Neste aspecto, as demais correntes religiosas não seriam igrejas e estariam condenadas. “Essa visão matou o ecumenismo, e ele se deu conta de que era insustentável. Aí, como bom alemão, ele disse: ‘Eu não tenho mais espaço, vou deixar o lugar para outro’. E, nobremente, desprendido do poder, renuncia”, avaliou Leonardo Boff.

Sem a mão firme da censura

Esta é a primeira sucessão papal que a imprensa pôde cobrir sem restrições, destacou Luiz Paulo Horta. Nas transições anteriores, as notícias passavam por um filtro. O jornalista elogiou o amplo espaço que os maiores veículos de comunicação do Brasil reservaram para a troca de comando na igreja católica. “Mesmo com toda a crise, existe um interesse enorme nesse mistério católico, do Vaticano”, assegurou Horta. O jornalista comentou que houve momentos em que o papa Bento XVI, de fato, posicionou-se contrário aos avanços. Por outro lado, no seu dia a dia teve momentos luminosos, como quando propagou uma ortodoxia positiva e defendeu a “aventura cristã” no sentido de recuperar o “romance” perdido.

A igreja argentina, na opinião de Boff, foi omissa diante dos crimes cometidos pela ditadura militar. Padres capelães, inclusive, justificavam a tortura. Poucos bispos levantaram-se contra violações aos direitos humanos. De acordo com informações obtidas pelo teólogo, Bergoglio silenciou durante a ditadura, mas não esteve envolvido em crimes políticos. Para Luiz Paulo Horta, o governo da presidente Cristina Kirchner está fazendo uma operação propagandística para denegrir a figura do papa, que é opositor ao seu governo. Um representante do governo teria enviado um dossiê contra Bergoglio para que os cardeais lessem antes do conclave. “A Argentina é um país tremendamente complexo”, explicou Ariel Palacios. O correspondente comentou que há cerca de quatro anos um padre foi condenado por participar ativamente de sessões de tortura.

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Novos cânones

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 676, exibido em 19/3/2013

A mídia internacional foi uma das protagonistas da troca de pontífices e assim continuará daqui para a frente. Na verdade, a mídia é a protagonista em todos os negócios humanos mesmo que as motivações sejam espirituais ou morais.

Estavam na mídia as razões que levaram Bento XVI a abdicar. Foi a mídia que tornou pública sua convocação para a renovação após o inédito gesto. Foi a mídia que, em seguida à escolha de Jorge Mario Bergoglio, levantou as primeiras restrições oriundas da Argentina.

O secretismo que envolve a Santa Sé dificilmente será rompido, o significado dos seus comunicados continuará hermético, mas a pesar disso a mídia continuará sendo o palco onde transcorrerão todos os lances da história futura do menor e talvez mais visível Estado do mundo.

Apesar da legião de vaticanistas convocados pela mídia para explicar e antecipar os acontecimentos, a verdade é que a mídia não consegue satisfazer a sede de saber daqueles que querem algo mais denso do que os 140 caracteres de um tuite. A cobertura isenta e objetiva da instituição mais antiga da humanidade e seus desdobramentos nas esferas política, econômica, moral e espiritual exige novos cânones de jornalismo. E estes cânones foram expostos pelo próprio papa Francisco aos cerca de quatro mil jornalistas reunidos em Roma no sábado (18/3): buscar a verdade, a bondade e a beleza.

Em matéria de jornalismo, o papa está aprovado. Será que ele assistiu a algum de nossos programas?

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A mídia na semana

>> O presidente mexicano Peña Nieto quer cumprir as promessas da campanha eleitoral e emplacar as reformas estruturais. Uma delas situa-se na estratégica área das comunicações e telecomunicações. Ninguém acreditava que o novo presidente tocaria nos interesses da poderosa Televisa, que controla 70% da TV aberta do país, sobretudo porque a Televisa apoiou ostensivamente a candidatura de Peña Nieto. Para surpresa de todos, o presidente foi em frente e também enfrentou a América Movil, império de telecomunicações, propriedade do homem mais rico do mundo, Carlos Slim. Peña Nieto prometeu enfrentar as oligarquias e fazer as reformas que o pais carece, vai regular o mercado, mas ninguém o acusa de atentar contra a liberdade de expressão ou aderir ao bloco bolivariano. A modernização implica mudanças drásticas. Realizadas democraticamente, ninguém ousa contestar.

>> Vai entrar para a história o julgamento do ex-PM paulista Mizael Bispo de Souza, condenado a 20 anos de prisão pela morte da namorada Mércia Nakashima. O ineditismo não se relaciona com a pena imposta ao réu, mas com o fato de o juiz Leandro Cano ter obtido a autorização do réu, da defesa e do Ministério Público para liberar a transmissão ao vivo do julgamento perante o tribunal do júri. Ao que consta é o primeiro julgamento no Brasil de um assassino acompanhado livremente pelos meios de comunicação e redes sociais. O magistrado acha que a transmissão teve um papel didático e cívico, mas juristas e professores se manifestaram preocupados com a justiça transformada em espetáculo. Quando o crime é de caráter econômico ou político, a transmissão ajuda o processo democrático; quando o crime é de morte, o espetáculo banaliza a violência.

>> A Inglaterra voltou na segunda-feira (18/3) à vanguarda da imprensa quando os três principais partidos chegaram a um acordo para criar um sistema de regulação da imprensa sem qualquer interferência na sua liberdade. Apesar das profundas divergências ideológicas e das demoradas negociações, a proposta foi enfim adotada. A mídia já aceitara voluntariamente as conclusões e sugestões do juiz lord Brian Leveson. As vítimas das escutas telefônicas que culminaram com o fechamento do tabloide News of the World também participaram das negociações, representadas pelo famoso ator Hugh Grant desde o início. A regulação que será adotada no Reino Unido dificilmente poderá ser copiada em outros países, dadas as características institucionais britânicas. O importante é que o país que inventou a liberdade de imprensa deu um passo decisivo para protegê-la de abusos autoinfligidos.

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Lilia Diniz é jornalista