Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Afinal, como se narra a dor?

Os tiros da manhã de quinta-feira (7/4) na zona oeste do Rio de Janeiro sacudiram as atenções da maioria dos brasileiros. Como se estivéssemos em um sono profundo, fomos atirados da cama para perceber uma realidade assustadora e terrível. O resultado aterrador do massacre na escola de Realengo era algo que sempre imputamos aos norte-americanos, um povo tão beligerante que se arma até em supermercados. O resultado do massacre é uma fila de corpos de quem cultivava seu futuro ainda de forma muito adolescente. O resultado é o aparecimento de personagens como o atirador, movido por razões ainda desconhecidas, moldado pela solidão, frustração e pensamentos doentios.


Infelizmente, o país já havia visto adolescentes vitimados pela violência urbana. Desconhecido ainda era o anônimo que encarna o mal e dispara o gatilho não mais a esmo, mas escolhendo suas vítimas, alvejando órgãos vitais, recarregando reiteradamente as armas, disposto a acabar com tudo.


Dúvidas, dúvidas


Os tiros da manhã de quinta-feira em Realengo chacoalharam também as redações brasileiras. Todas as pautas despencaram; equipes se rearticularam para dar conta de uma cobertura difícil, delicada, indigesta. Difícil porque os canos das armas ainda estavam fumegando quando os primeiros repórteres se precipitaram até o local do crime, e porque nem mesmo as autoridades que cuidavam do caso estavam suficientemente informadas do que estaria acontecendo.


Uma cobertura como essas é delicada porque envolve grandes cargas de emoção, porque é fácil deixar-se contagiar por essas emoções e relegar a informação a segundo plano. E tal cobertura é indigesta porque ninguém com alguma sensibilidade humana se satisfaz em cumprir um serviço como este.


É claro que não poderia ser de outra forma. O fato invadiu a rotina das pessoas pela tela da TV, pelos quilômetros de páginas de jornais e revistas, pelo rádio e internet. Tornou-se rapidamente o assunto mais comentado, o principal nas rodas de conversa, no ponto de ônibus, nas salas de aula.


A onipresença do fato nos meios de comunicação dá a ele uma dimensão maior ainda. Então, não é possível escapar de alguns questionamentos:


** Não está exagerada essa cobertura?


** É possível fazer algo menos dramático e emocional? Como se faz isso?


** Ao abordar parentes e vítimas, como repórteres devem se comportar em momentos tão delicados?


** Os rostos das crianças sobreviventes devem ser mostrados, contrariando os muitos cuidados que recomenda o Estatuto da Criança e do Adolescente?


** Voltar à cena do crime para apresentar o telejornal ao vivo não é fazer sensacionalismo?


** Produzir videoclipes com fotos das vítimas com um fundo musical melancólico não é demasiado?


** Chegar às bancas com uma capa de jornal que mostra asas de anjo em fundo negro não transcende as fronteiras do que é essencialmente informativo?


** É possível que os profissionais de imprensa se blindem emocionalmente para narrar esses fatos? E é esperado que isso aconteça? Em nome do que se faria isso?


** Afinal, como é que se reporta a dor dos outros na mídia?


As dúvidas são muitas, mas elas interessam inicialmente a quem está atrás dos microfones. Àqueles que tentam amenizar a ausência de um filho ou se perguntam o porquê de tudo aquilo, a esses restam indagações sobre o sentido da própria continuidade da vida.

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Jornalista, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS